terça-feira, 2 de março de 2010

Nomes

Texto encaminhado pelo colega Sandro Lobato, Promotor de Justiça em Matinha:

Pra Que Parquet? Os nomes que nós somos ― Texto de Élder Ximenes Filho, Promotor de Justiça no Ceará:

“No princípio era o verbo” e o primeiro trabalho de Adão foi exatamente o de nomear todas as coisas. As religiões referem o ato criador como idêntico ao pensamento e à simultânea expressão verbal do Criador. Antes da tradição judaica, já os rituais báquicos buscavam pelos cânticos tornar presente o Deus cujo nome era invocado e cantado repetidamente. Ísis ludibriou Rá a revelar-lhe o nome e, assim, tomou-lhe a potestade. Palavra-Nume. Nome era Deus.

Ernst Cassirer ensinou que a civilização formou-se na época em que as formações verbais apareciam “providas de determinados poderes míticos, e de que a Palavra se converte numa espécie de arquipotência, onde radica todo o ser e todo acontecer.”(1)

Superada a visão mítica do mundo, são os poetas que até hoje perseveram à margem da útil denominação e cumprem a missão de buscar os outros sentidos possíveis, eclipsados pela razão utilitária. Octávio Paz dizia que a poesia tem a missão de restabelecer a “palavra original”(2). Nome é mágica!

Os designativos das coisas são pedras fundamentais da linguagem e, mais que isto, transformam-se nos próprios seres dotados desta linguagem, quando pensam as coisas designadas. Michael Foucault considera que “os códigos fundamentais de uma cultura ... fixam, logo de entrada, para cada homem, as ordens empíricas com as quais terá de lidar e nas quais se há de encontrar.”(3) Não é apenas natural, mas necessário que haja a identificação entre o nomeado e seu nome, pois o pensamento humano é feito dos símbolos nos quais consistem, em última análise, estes nomes. Nas ciências e na filosofia ocidentais, a busca da perfeita expressão, do dizer mais claro – para comunicar e convencer – consiste precipuamente na busca da univocidade das expressões: digo isto e não aquilo. Nas palavras do evangelista Mateus, retomando esta referência básica de nossa cultura, “seja, porém, o vosso falar: sim, sim; não, não” – novamente a identidade entre a palavra e o ser, condenando-se a hipocrisia. Nome deve ser verdade!

Possuir um nome e presentar-se em sociedade como função deste nome é inescapável a todos os seres e instituições. O apelido pejorativo tem sido instrumento de segregação em todas as épocas. Humilhada a criança fora da estética dominante – colégio tortura. Marcada a etnia fora dos planos da raça dominante – pólis matadouro. Esquecida a classe fora do modo de produção dominante – Estado indiferença. Ter domínio sobre estes processos, escolher o próprio nome e impô-lo frente aos demais é o mais básico exercício de poder. Quem não consegue autonomear-se já está, de partida, sob domínio de outrem. Nome é poder!

Os compêndios divergem sobre a origem do Ministério Público, mas todos concordam na transição pela França do Regime Antigo. Não repetiremos o tão sabido, por respeito aos historiadores do Direito. Sejam lidos e honrados. Proponho – humilde em minha ignorância – apenas um olhar novo sobre um “detalhe” antigo.

De chofre a etimologia diz que Parquet traduz-se como “assoalho”, “piso”, “solo um nível abaixo”. Digo eu, atualizando estas relações: Parquet era “capacho”.

Naquela época os agentes do rei, as “gentes” do rei – les gens du roi – representavam os interesses do Estado corporificado no Soberano perante a magistratura. Os Juízes ficavam sentados em suas cadeiras e estas sobre um estrado. O signo do poder era o Trono no qual o verbalizador do Direito repousava sobranceiro. No rés do chão e de pé ficavam nossos pais. Daí as outras denominações: para aquela de “Magistratura Sentada” – magistrature assise e para estes de “Magistratura de Pé” – magistrature débout. Há quem use esta alcunha aqui, escarbujando sobre os autos indisfarçável masoquismo. Lembremos das empilhadas prisões brasileiras e, nelas, dos mais fracos, novatos, “otários” que – além da sevícia – não podem dormir deitados. Eles são os “Pés Inchados”. Nome humilhação.

Não repetirei as também sabidas conquistas históricas de respeito, poder e a correspondente responsabilidade. Para seu exercício, as prerrogativas da Instituição – que precisam ser bem compreendidas como instrumentos para o exercício de tantos misteres. Armas para a proteção do bem comum, para a guarda do Estado Democrático de Direito. Não mais. Nem precisa.

Nossos direitos são tão merecidos agora quanto dura foi a luta ontem. Devem permanecer enquanto úteis para estas finalidades maiores. Ministério: mister, missão. Público: do povo, para o povo. Merecemos prestígio enquanto honrarmos o nome precípuo que designa – e somente ele – quem somos nós.

Mas se em qualquer momento confundimos privilégios e prerrogativas, estamos desviados do bom caminho e apequenados de preguiça. Se esquecemos de onde viemos, já estamos perdidos. Se tivermos medo do combate atual, é porque fomos derrotados. Se relevamos as humilhações antigas... merecemos novas.

Retorno a Cassirer repetindo que o nome é “parte da personalidade de seu portador; é uma propriedade que deve ser resguardada com o maior cuidado e cujo uso exclusivo deve ser ciosamente reservado.”(4)

Conclamo ao abandono imediato e total do nome Parquet ou equivalente. Não é difícil: sequer um tumor a extirpar. Apenas mau costume, sestro, um cuspir de lado na calçada... Deixemos disso. Aspiremos à grandeza.

Nome Ministério Público.

Fixamo-nos aqui, sem meias-palavras: triste de quem usa um nome sem saber a que veio. Este artigo, diversamente triste, é para ofendê-los.

Um comentário:

Rodrigo Bastos Raposo disse...


muito bom!