terça-feira, 30 de março de 2010

O jirau

As pessoas se ajuntavam à porta do fórum. A cidade acanhada recebia uma agitação extra. Alguns curiosos indagavam, sem respostas. O sol, sem fazer perguntas, já importunava, deitando gotículas na face do velho advogado que, microfone na mão, à frente de todos, arrumando alguns papéis rebelados pela pouca brisa que insistia em manter-se preguiçosa, preparava sua fala para traduzir a cena inédita. Mesmo não morando ali, a cidade o conhecia bem. Destacavam-no pelo bigode de pontas tecidas com gosto, as cãs sempre gomadas, e a voz cheia de humor e atenção. O paletó parecia há tempos ter-se afastado de umas boas escovadas, e era o mesmo que vestira na véspera quando um grupo de servidores, que usava seu patrocínio na justiça, veio reclamar de sua falha na condução do processo. Assustou-se, até mudar de cor, ao ouvir “foi o juiz”. Ora, sua excelência, com desplante, afirmara àqueles que o entrevistaram no gabinete, que o doutor advogado negligenciara seu mister, travando o processo que os acudiria. Essas palavras haviam se espalhado por toda a cidade e invadido o vizinho Piauí, no disse-que-disse do final de semana. Talvez nem tivessem tal propósito, mas o fato assim estava consumado, e o patrimônio de sua credibilidade fora arrastado pelo chão, como as ossadas e pelancas disputadas pelos cães em volta do mercado. Por isso, agira rápido, convocando seus clientes e outros para aquele encontro. Com as saudações iniciais aprontou logo os agradecimentos pela presença de tantos, declamou seu respeito pela cidade, seu amor pela justiça e sua paixão pela verdade. Em nome desta é que estava ali, com umas três cópias do processo que fazia questão de mostrar e explicar em detalhes, isentando-se de culpa. Talhado pelo tribunal do júri, deitou os fatos numa sequência que mantinha o suspense necessário para hipnotizar a plateia. Arrancou risos com seus trejeitos amatutados, e aplausos em uma boa sequência gongórica com verbos em tom de desafio. Ninguém o ouviu xingar ou espezinhar, nem tocar no nome de sua excelência que, pouco distante das últimas cabeças ensolaradas, arfava, e tinha dificuldades para acomodar as mãos. Nem por isso deixou de pontuar que, na justiça, quem chega, em pouco, numa remoção ou promoção, vai, mas o advogado fica e, para sobreviver, não pode deixar nenhuma sujeira sobre seu jirau. A cidade, depois, alimentou-se, por dias sem conta, com a verdade e a coragem do tribuno. Testemunha? O sol arregalado.

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