quarta-feira, 24 de março de 2010

Ontem

Ainda sobre o tema moradia na comarca, postamos texto de autoria do José Luiz Oliveira de Almeida, publicado em seu blogue.

“Estimulado pelo testemunho do colega magistrado Francisco Soares Reis Júnior, decidi contar um pouco da minha saga, enquanto juiz com residência na Comarca.

Anoto, de logo, que, diferente dele, permaneci morando nas comarcas pelas quais passei, apesar de todas as intempéries, como vou narrar a seguir.

Pois bem. Em 1986 assumi a magistratura do meu Estado. Fui titularizado, a pedido, na Comarca de Presidente Dutra, onde me deparei com as condições mais adversas. Primeiro, havia incontáveis processos parados, em face do tempo que a comarca ficou sem juiz. Depois, por falta de opção, fui morar numa casa que ficava numa avenida de piçarra. Mesmo dentro de casa, com algum tempo, se eu passasse um papel higiênico no rosto, ele saia amarelo – ou vermelho, sei lá – em face da poeira que tomava conta da minha casa. Além da piçarra, havia o calor – insuportável. Para completar o quadro, potó, que a gente recolhia numa pá de lixo, tamanha a quantidade deles. A minha esposa, grávida de alguns meses do nosso primeiro filho, dormiu, várias vezes, no chão, sobre as lajotas da sala de jantar, em face do calor que nos sufocava, sobretudo nos meses de agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro. Para completar, era comum, quase rotineiro, faltar energia, sobretudo à noite, quando mais precisávamos de conforto – se é que havia algum conforto morando onde morávamos. Passei muitas horas da minha vida abanando a minha mulher, para que ela pudesse dormir, vez que, grávida, sentia calor excessivo.

Para completar o quadro, a comarca era tida e havida como terra de pistoleiros. Todas as vezes que eu tentava impulsionar um determinado processo, desses que noticiavam crimes de encomenda, eu era aconselhado pelos serventuários a não mexer com aquilo, pois poderia me trazer dor de cabeça. Apesar de tudo, nunca deixei de impulsionar nenhum processo. Claro que tive medo, mas não podia demonstrar. Um juiz não pode parecer covarde diante dos seus jurisdicionados.

E assim fui levando durante mais de três anos.

Vivi todas as adversidades que um magistrado pode viver numa comarca. Eu não podia ter amigos. A política permeava, impregnava a vida em a sociedade. Havia os que estavam no poder e os que eram capazes de qualquer expediente para ascender. Fui vítima de incontáveis aleivosias. Aliás, de aleivosias nenhum juiz escapa. Fui acusado, até, de ganhar uma fazenda, com incontáveis cabeças de gado; fazenda que, até hoje, não incorporei ao meu patrimônio, mesmo porque até os dias atuais não sei quem me deu a fazenda.

Em face dessas e de outras tantas injustiças que fizeram a mim, o professor Doroteu Soares Ribeiro passou grande parte dos seus últimas dias de vida supondo que eu fosse um ladrão.

Um determinado dia, lembro como se fosse hoje, fui à sala de Madalena Serejo, à época juíza da Vara de Entorpecentes, que ficava em frente a minha, no Fórum da Comarca de São Luís, e lá deparei-me com o professor Doroteu Ribeiro, que não me suportava, em face das informações de que eu havia trocado a eleição de prefeito de Presidente Dutra por uma fazenda. Ao ver-me, o professor se assustou e fingiu não me ver. Depois que eu saí da sala de Madalena Serejo, ele disse a ela, textualmente:

― O Dr. Almeida é desonesto.

Madalena Serejo, me conhecendo muito, desde quando eu advogava pela baixada maranhense, advertiu o professor Doroteu que ele estava sendo injusto e que era melhor que ele procurasse informações acerca da minha conduta, a partir das quais ele mudaria a sua opinião a meu respeito.

O professor Doroteu, poucos meses antes de falecer, esteve com Madalena Serejo e disse a ela:

― Estou começando a mudar o conceito que tenho do Dr. Almeida.

Imagino que ele não tenha tido tempo de mudar o conceito que tinha de mim. Deve ter partido para outra vida no mínimo com dúvidas acerca da minha honorabilidade. Logo eu, cujo patrimônio é puramente moral.

Por causa dessa e de outras injustiças, sofri muito, pois, àquela época, 1986, eu vivia problemas financeiros horríveis, já que o que percebia não dava para manter o meu padrão de vida. Àquela época, não havia um único magistrado, que sendo honesto, vivesse sem o beneplácito de um cheque especial.

O juiz que fixa residência na comarca é, sim, muito mais suscetível, muito mais vulnerável que aquele que só permanece nas comarcas às terças, às quartas e às quintas-feiras.

Todavia, apesar de tudo, ainda entendo que juiz deva morar na comarca. Só na comarca é que pode viver intensamente o seu mister. Nesse sentido, sublinho que inúmeras, incontáveis foram as prisões injustas que relaxei nos finais de semana. Morasse eu em São Luís, e muitos teriam que passar um final de semana inteiro preso, até que a digna autoridade judiciária resolvesse voltar para o seu local de trabalho.

Vida de juiz, no interior, é mesmo muito difícil. Mas não se pode, sob esse argumento, deixar de fixar residência na Comarca.

Eu nunca sucumbi diante das dificuldades. E elas foram muitas. Eu sofri, chorei, lamentei, passei momentos de aflição, desde o dia que decidi morar na comarca. Mas não retrocedi. Como um indomável, finquei pé. Nada, nenhuma adversidade me fez retroceder, pois eu tinha assumido comigo mesmo o compromisso de fazer da minha profissão um sacerdócio. Por isso sofri. Por isso passei noites insones. Só eu e minha esposa sabemos tudo que passamos.

No próximo capitulo vou narrar alguns fatos que, decerto, darão a dimensão (quase) exata no que é viver na comarca.”

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