sábado, 18 de setembro de 2010

O eleitor


Muitos pularam, deixando marcas dos pés na areia fofa de Miramar. A maré ainda lançava, sob os ventos fortes de setembro, desdobrando a saia rendada de espuma, enquanto o frescor da manhã mal vencia o embate sem glória com os primeiros raios do sol. Chegavam da praia de Cunhã-coema, satisfeitos com os discursos da noite anterior. Os candidatos fariam uma rápida visita às poucas casas do povoado, para valorizar o jovem Nunes e sua família, que há anos se engajara convicto no partido da comunidade. A cada eleição pedia um comício, sempre adiado, com os cuidados da melhor diplomacia, em razão do pequeno número de eleitores e das dificuldades de acesso à ilha. E eram votos certos. Dessa vez, entusiasmado, conseguira uma visita. Seria só isso, e um cafezinho forte. Depois dos risos, apresentações e cumprimentos, tudo tinha que ser bem rápido! Uma. Duas. Três. Quatro. Camarão torrando na casa do Josué; belisca! Cafezinho escumando na casa da Neuza; quente! Outro na casa da Otávia; gostoso! Peixe recendendo na brasa; quem vem atrás, sobra! Avexa, avexa, que a maré vai já vazar! O maior motivo da pressa. Logo, alguém alerta: vazou! Um corre-corre rumo ao barco. Pés na areia, na lama, na água. Todos os braços forcejam, em vão. Daqui. Dali. De novo. As últimas tentativas nem balançam o costado. Os corpos extenuados acomodam os grunhidos em torno do velho barco. Paira um instante de quase irritação, com a evidência de que o tudo planejado para aquele dia e o seguinte estava perdido. Pouco a pouco, a mãe do Nunes, declarando honras pela modesta hospedagem que oferecia, tentando alegrar a trupe com a promessa de uma noite enluarada, não consegue disfarçar o riso maroto da cumplicidade. A família deixara encalhar, de propósito. Nas reentrâncias, a maré, não o relógio, dita o tempo. Só poderiam deixar a ilha na manhã seguinte. Miramar, enfim, teria seu comício. E se fez, à noite, na areia, sob o tapete de estrelas, porque candidatos querem votos, mas vale pouco o eleitor que não mostra prestígio.

2 comentários:

Prof Júlio César Maciel disse...



Juarez,

Parabéns pelo seu gesto nobre em dividir suas idéias e opiniões. Sensibilidade, cuidado, atenção, educação e respeito como conduz os temas que trata. O último texto, sentimos as cores, os sabores do café, do peixe e do camarão, a riqueza de detalhes são formidáveis.

Prof Júlio César Maciel

Delvan Tavares Oliveira disse...



Caramba, esse texto me fez revisitar Valha-me Deus, Carrapato, Guajerutiua, Ilha dos Lençóis, Cajual dos Pereiras e outras tantas.

Só quem andou por ali e foi vencido, muitas vezes, pelas peripécias da maré, sente o seu aroma. Muito bom.

Delvan Tavares