sexta-feira, 10 de junho de 2011

A onda

"Em "A Política", Aristóteles defende que alguns homens seriam destinados a governar, enquanto outros estariam fadados à servidão ou à escravidão.

É compreensível que aquele pensamento gozasse da qualidade de “sábio” no século IV a. C. Hoje, porém, em pleno século XXI, é irrefutável que cada cidadão guarda em si desejo (e direito) de protagonizar a sua existência. Esse desejo pode até encontrar-se escondido; todavia, basta uma fagulha, para que se inicie uma reação em cadeia. É por isso que é difícil saber-se donde e quando surgem os grandes movimentos de ideias e de valores sociais. Uma palavra aqui, um comportamento ali, uma indignação acolá e... pronto, podem surgir um estopim, uma força, ou uma onda. As reivindicações espraiam-se, encantam, contaminam, seduzem e, acima de tudo, promovem mudanças. Nada as pode deter.

Ora, se é assim, pode-se asseverar que a democracia obedece a uma genuína tendência da natureza humana, para a liberdade cidadã. Por isso, não é suficiente falar-se, por exemplo, apenas em “eleições diretas”, em “representatividade”, ou em “forma republicana”. Todas essas expressões relacionam-se apenas à chamada “democracia formal”, o que se chamará aqui de “arremedo de democracia”, “democracia falaciosa”, ou “democracia ideológica”. Sim, nesse sistema da “falsa democracia”, os cidadãos são alijados do discurso sócio-político-jurídico. Eles são considerados incapazes de manifestar opinião, porque, para o establishment, os indivíduos teriam pessoas, órgãos ou autoridades mais “competentes” para fazê-los. Trata-se, portanto, do que a professora Marilena Chauí denomina “discurso competente”. In verbis:

O discurso competente é o discurso instituído. É aquele no qual a linguagem sofre uma restrição que poderia ser assim resumida: não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância. O discurso competente confunde-se, pois, com a linguagem institucionalmente permitida ou autorizada, isto é, com um discurso no qual os interlocutores já foram previamente reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir, no qual os lugares e as circunstâncias já foram predeterminados para que seja permitido falar e ouvir e, enfim, no qual o conteúdo e a forma já foram autorizados segundo os cânones da esfera de sua própria competência.”1 (Cultura e democracia – o discurso competente e outras falas. 12ª edição. São Paulo: editora Cortez, 2007. p. 19).


É claro que todo esse discurso resume-se a uma mera manobra artificiosa, para calar o cidadão. Todavia, o mais lamentável ocorre quando ele ecoa entre alguns membros do Judiciário, os quais, sob alegadas lucubrações cerebrinas, olvidam-se de que o sistema de Justiça deve ser, antes de tudo, justo.

Há cerca de dez anos, durante uma audiência pública em Timon, presenciei um Vereador dizer que impetrara um mandado de segurança para ter acesso a documentos públicos do município. Na oportunidade, requereu liminar, a qual foi concedida pelo magistrado de primeira instância. O município, por sua vez, teria agravado por instrumento, logrando êxito no recurso. Qual o fundamento? O tribunal dissera que o edil não possuía legitimidade para o pleito. Segundo a corte, somente o Poder Legislativo poderia fazê-lo e, ainda assim, através do Presidente da Casa, após votação devida. Tudo, teria dito o Judiciário, em respeito ao princípio da Separação dos Poderes. É que o controle externo do Executivo caberia ao Legislativo como um todo e, não, a um vereador.

Nunca tive acesso aos autos, para saber até onde iria a verdade nas alegações do indignado parlamentar municipal. Naquele instante, inclusive, parecia-me absurdo e inverossímil o que ouvira. Acontece que, recentemente, o Tribunal de Justiça do Maranhão emitiu pronunciamentos de conteúdos semelhantes. Desta feita, o MINISTÉRIO PÚBLICO ajuizara ações civis públicas, para garantir que o prefeito, tão-somente, respeitasse o art. 49 da LRF, disponibilizando cópia de toda a prestação de contas no órgão responsável pela sua elaboração e na Câmara, até, no máximo, o momento em que a remetesse ao TCE-MA. Tratava-se de mais uma importante demanda na busca de efetivar uma etapa do programa interinstitucional CONTAS NA MÃO, fortalecendo a democracia.

Pasme-se! O tribunal, nessas oportunidades, asseverou que não existe dever legal de deixar a prestação de contas disponível. Aliás, foi apontado, um dos fundamentos, o respeito ao princípio da Separação dos Poderes.

EMENTA: PROCESSO CIVIL. APELAÇÃO. PRESTAÇÃO DE CONTAS DO ESTADO, OBRIGATORIEDADE. DESNECESSIDADE. NÃO-PROVIMENTO.

I – pela interpretação sistemática dos dispositivos insertos nos arts. 48 e 49 da Lei n. 101/2000 (Lei Responsabilidade Fiscal), prescinde da apresentação de contas simultaneamente à Câmara Municipal ao Tribunal de Contas do Estado, sendo obrigatória, tão-somente, para o segundo que, em seguida, envia o processo com parecer prévio à Comuna para julgamento. Sendo que antes desse julgamento, a Câmara deverá disponibilizar as contas recebidas.

II – apelo não provido. (Apelação n. 038149/2010, de São Domingos do Azeitão. Acórdão n. 99.337/2011. 3ª. Câmara Cível, sessão de 17-02-2011)


EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. LIMINAR CONCEDIDA. PRESTAÇÃO DE CONTAS PELO PREFEITO. DEVIDO PROCESSO LEGAL. ENVIO CONCOMITANTE À CÂMARA E AO TCE. INEXISTÊNCIA DE DEVER LEGAL. AFRONTA AO RITO DO ART. 31 DA CF/88. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. ART. 49 DA LRF. INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO.

I. Inexiste obrigação legal de envio de contas à Câmara Municipal e ao Tribunal de Contas Estadual concomitantemente pelo Chefe do Poder Executivo Municipal.

II. É obrigatória a observância do rito estabelecido pelo art. 31 da Constituição Federal de 1988 em que se considera oportuna a análise do Legislativo somente após a emissão do parecer técnico pelo TCE, sob pena de violação ao postulado da separação dos poderes. Precedente.

III – Interpretação conforme o preceito do art. 49 da Lei de Responsabilidade Fiscal.

IV – Recurso conhecido e provido. (Agravo de instrumento n. acórdão n. 0001207-30.2010.8.10.0034. acórdão n. 100.778/2011. 4ª Câmara Cível, sessão de 05-04-2011).

Em suma, o TJ-MA, nesses julgamentos, acolheu a tese do “discurso competente”, abraçando o discurso ideológico da “democracia formal” e desprezando os apelos da “democracia material”. Para o órgão, cidadão não pode ter acesso à documentação pública, salvo após a apreciação pela Corte de Contas – o que pode ocorrer somente muitos anos depois, quando, inclusive, as provas de ilicitude já tenham sido corroídas pelo tempo.

O mais interessante é que quando o TJ-MA aludiu ao princípio da Separação dos Poderes, olvidou-se dos princípios da “cidadania” e do “pluralismo político”. Aliás, desprezou o art. 74, §§1º e 2º da Constituição Federal, que assegurou aos cidadãos a legitimidade para delatar, às Cortes de Contas, as irregularidades na Administração. In verbis:

Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de:
(...)
§1º. Os responsáveis pelo controle interno, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade, dela darão ciência ao Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade solidária.

§2º. Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades perante o Tribunal de Contas da União.

Art. 75. As normas estabelecidas nesta seção aplicam-se, no que couber, à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos dos Municípios.

Há mesmo de se perguntar: como os cidadãos podem delatar irregularidades ao TCE e ao TCU, se o Poder Judiciário diz-lhes não poderem ter acesso à documentação? Como se denunciarem ilicitudes de uma estrutura que se desconhece? Como negar-se legitimidade aos genuínos titulares do direito?

Note-se que ninguém desconhece a necessidade de prévio exame do TCE, para que haja julgamento político das contas pela Edilidade. Todavia, não é possível tolher-se o direito e a liberdade de os cidadãos fiscalizarem o patrimônio que lhes pertence, conhecendo os meandros e os eventuais crimes e improbidades administrativas. Aliás, obstar o exercício de tal direito implica também ofensa ao princípio da inafastabilidade da jurisdição. Afinal, não se poderia, por exemplo, permitir ao cidadão o ingresso de uma ação popular, se ele não pode ter ciência dos atos e dos fatos administrativos em todos os seus pormenores. Em suma, somente em regimes totalitários se pode conceber discursos dessa natureza.

Fica claro, assim, que o tribunal também menosprezou uma teoria própria do campo constitucional: a teoria dos poderes implícitos. Esta pode ser resumida no seguinte dizer: “quem quer os fins tem de dar os meios”. Se a Carta Política (porque é democrática) quer que o cidadão seja fiscal, delatando as irregularidades, como impedir-lhes de ter acesso imediato às documentações. Afinal, se os indivíduos somente pudessem analisar os documentos após o procedimento no Tribunal de Contas, de que serviria o art. 74, §2º (acima mencionado)?

É incrível como tal pronunciamento pôde dar um salto negativo de mais de vinte séculos! A visão aristotélica de que somente alguns podem expressar pensamentos políticos foi ressuscitada, vilipendiando-se incontável número de mortes e de revoluções em prol do movimento democrático. É lamentável que os julgadores, nos casos em tela, não se apercebam de que a Separação dos Poderes nada tem a ver com golpear-se a cidadania.

A propósito, importa aqui frisar que a Separação dos Poderes, se compreendida de maneira fria e isolada, torna-se um dos maiores mecanismos antidemocráticos. É que, quanto mais se ilham as estruturas estatais, menos oxigenação elas recebem umas das outras e, principalmente, dos atores sociais. Desta forma, o Estado (que se diz democrático) dá largos passos em direção à aristocracia ou à ditadura.

Sobre o risco da Separação dos Poderes em face da democracia, indelével advertência faz Alain Toraine:

No início da história da democracia, tal separação serviu sobretudo para limitar a democracia e o poder da maioria, preservar os interesses da aristocracia, como é manifestado no pensamento de Montesquieu, ou os interesses de uma elite esclarecida, como foi nos começo da república americana.(...)

Se a separação dos poderes fosse completa, a democracia desapareceria e o sistema político, confinado em si mesmo, perderia sua influência sobre a sociedade civil, assim como sobre o Estado. A democracia definiu-se, antes de tudo, como a expressão da soberania popular. Que lhe aconteceria se cada poder fosse independente um do outro? A lei tornar-se-ia rapidamente um instrumento de defesa dos interesses mais poderosos se não fosse constantemente transformada e se a jurisprudência não levasse em consideração de forma ampla a evolução da opinião pública. (...)

A democracia define-se não pela separação de poderes, mas pela natureza dos elos entre sociedade civil, sociedade política e Estado. Se a influência se exercer de cima para baixo, não existirá democracia; pelo contrário, chamamos democrática a sociedade em que os atores sociais orientam o Estado. Como será possível não reconhecer ao princípio da soberania popular a prioridade sobre o tema da separação dos poderes? As instituições políticas não devem ser isoladas dos atores sociais.” (in: O que é a democracia? Alain Toraine; tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1996).

Ao que parece, uma parte de nossos magistrados já foi contaminada por esse “vírus da separação”. A insensibilidade já os atingiu. Já não ouvem os reclamos da sociedade, sob o argumento (sempre recorrente) de que “o povo nada entende sobre leis”. Então, pergunta-se: com todo o respeito, mas o que os “juristas da separação” entendem sobre democracia material?

O alento, diante de tudo isso é que atitudes desse jaez não podem barrar a onda da democracia, cuja força difunde-se por todo o corpo social, que grita por liberdade. Em vez de arrefecer os ânimos, os acórdãos referidos são motivo para que se galvanizem energias.

Aliás, não é verdade que o Parquet maranhense, como defensor do regime democrático (juntamente com os de outros Estados), enfrentou e logrou êxito, ante decisões igualmente reacionárias? Quem não se lembra de que o TJ-MA, há até poucos anos, alegava a ilegitimidade do Ministério Público, para executar multas e imputações de débito oriundos dos Tribunais de Contas?

O Ministério Público, irmanado com o TCE, amadureceu, durante o “CONTAS NA MÃO”, doutrina e jurisprudências que comprovaram o erro do TJ. As reuniões da comissão consultiva do programa (da qual tive a honra de participar), os argumentos de Conselheiros (como Caldas Furtado e Blackout), os pareceres técnicos de Cassius Chai, a coordenação de Márcio Thadeu, os incansáveis trabalhos do Procurador de Justiça José Henrique Marques Moreira e Raimundo Nonato de Carvalho Filho, as audiências públicas organizadas pelos aguerridos promotores – tudo, absolutamente tudo, contribuiu para muitas vitórias. Em âmbito nacional, várias outras demandas, oriundas de Ministérios Públicos estaduais, alcançaram, através dos recursos, os tribunais superiores, culminando em sábias decisões do Superior Tribunal de Justiça, o qual, por unanimidade, reconheceu a tese. O Ministério Público, efetivamente, pode executar as referidas multas e imputações de débito!

Então, caros colegas! A partir desses riquíssimos debates on line, é chegada a hora de reativarmos laços em prol da transparência e da única democracia genuína, a democracia material. Aquela em que se reconhece ao cidadão o papel de protagonista e de homem livre. É chegada a hora de resgatar “magistrados separados”, lembrando-lhes de que a nossa Constituição é democrática e, assim sendo, estrutura um sistema jurídico aberto, que dialoga com a cidadania e que viabiliza a plena atividade fiscalizadora dos contribuintes.

Trata-se de uma ideia que se expande e que se sobrepõe a eventuais diferenças de pensamento dentro do Ministério Público. Para ratificar-se a assertiva, basta lembrar-se de que, a partir de anterior (e importante) convite da atual Procuradora Geral de Justiça (Dra. Maria de Fátima Rodrigues Travassos Cordeiro) e do inestimável apoio do nosso atual Secretário Institucional – Dr. Marco Aurélio Ramos Fonseca – a comissão consultiva do CONTAS NA MÃO já vai reunir-se uma vez mais.

Novos progressos aguardam-nos no horizonte. Afinal, como dito, ninguém barra uma onda democrática."

Francisco Fernando de Morais Meneses Filho
Promotor de Justiça em Pastos Bons

Nenhum comentário: