quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Eu te amo (2)

A cidade tinha uns ares de presépio, aninhada nas manhas do Rio Corda, ainda mais à noite, com os olhos na encosta da Altamira, alcançando, embaixo, as ruas de areia cintilante, sob um colossal tapete de estrelas. Naquele tempo, os migrantes do Seridó, sossegavam suas saudades, com a certeza de estarem às margens do paraíso. Farto e belo. Humano, porém. Pouco tardou saberem de Dona Ninita, do final da Luís Domingues, que recebia doses cavalares de desamor matrimonial, sob o linguajar de cinturões, cacetes, facões, pedras de rebolo e outros objetos da oportunidade. Ele, um estupor, lançava areia nas portas do terreiro e do quintal, para certificar a reclusão da amada. As bordoadas, ao retorno, eram mais requintadas: aqui, ali! faz, desfaz! suja, limpa! molha, seca! Sessões quase diárias, que ecoavam na feira, nas freiras e no cabaré do cai n'água. Sempre a morte anunciada. Véspera de São João, carregou a espingarda bate-bucha e gastou tempo amolando um facão novo, a quem encomendava a alma da distinta, que, por último ofício entre os vivos, deveria lavar a roupa do verdugo. Deixou-se demorar nas esfregas, para engabelar a morte. Quando o viu, na cadeira, de olhos cerrados, um anjo em suas entranhas desatou-lhe os pés e a enfeitiçou de coragem; aproximou o cano e repuxou o gatilho. Não sabe se ele ouviu o estampido que lhe perfurou os miolos, antes de revirar os olhos para dentro. Daí a meses, o anjo nasceu.

3 comentários:

MDT disse...

Amigo do Direito, caro Juarez. Infelizmente tão bela poesia retrata o sofrimento das mulheres dos "cafundós". Daqueles lugares que ninguém pensa ainda existir. Mas que somente o profissional do direito que atua no interior dos estados do norte e nordeste conhecem tão bem.
ei que o intuito da postagem não foi receber parabéns. Mas alertar os leitores brasileiros da realidade que é escondida das capitais. Onde as coisas parecem mais fáceis. Porém, o texto é merecedor de parabéns. Porque expressa a sensibilidade do autor na prática de sua profissão e missão. Deus o abençoe!! E continue o seu trabalho com fé de que muitos o lerão e se inspirarão para fazerem algo também.

José Márcio Maia Alves disse...

Juarez, parabéns pelo texto!
Lembrou-me Coelho Netto em "Canteiros de Saudade".
Não pude resistir a deixar o meu registro duplo e díspare: pela beleza do traçado da pena; e pela tristeza do infortúnio revelado por ela.
Um grande abraço,
Zé Márcio.

delvan tavares disse...

Juarez, a narrativa é impecável. Exige, porém, bastante concentração do leitor para apanhá-la em toda sua exuberância e plenitude. Uma leitura apressada pode enganar o leitor. Nao estou absolutamente certo de que os compreendi plenamente, mas me parece que sao situações de vida semelhantes com desfechos absolutamente distintos. Parabéns.