terça-feira, 6 de setembro de 2011

Eu te amo (6)

Afastava-se, para melhor escutar a ligação. O boi do Maracanã sacolejava sob o grito ritmado das matracas, entre o colorido das barracas adornadas com franjas de meaçaba, fazendo tudo combinar com a alegria daquela notícia: “É menina!” Entenda, antes, que essa voz, por nove anos, reclamando aos céus uma gravidez, afogara suas esperanças no pântano da tristeza, mas mudara de alma, desde que decidira acolher sem gerar. Era outra. Dizia. Diziam. A vida decidira pela vida. Agora, estava em viagem, para receber sua filha, que nascera no início da noite, numa cidade próxima a Bacabal. Passaria na maternidade, pernoitaria num hotel. A amiga recebeu a notícia sob a honraria prometida de madrinha; riu-se à toa, fazendo mimos para a afilhada imaginada, e derramou olhares gratificados sobre todos os cantos do festivo arraial. Era noite do dia seguinte, quando adentrou à casa para a primeira visita. Estranhamente, ali, os balões coloridos haviam-se despido do brilho, as flores rejeitado o viço, e uma faixa de boas-vindas parecia haver-se, voluntariamente, precipitado ao chão, enquanto o hálito da melancolia petrificava todos os viventes; ali, não se ouviam palavras, como se não existissem bocas. No quarto tingido pela luz difusa do abajur, sobre uma cama de casal, ela, olhos fundos, desviando soluços, com a cabeça no colo dele, fitava a recém-nascida inteirando seu primeiro dia de vida. A tristeza era trágica: do hospital, a mãe reclamava a devolução da filha. Com a gravidez acidental, o pai a expulsara de casa, debaixo de surras, e a gestação transcorrera sob pesadas súplicas de adoção. Perdoada, a queria, sem demora, ‒ mais coação dele, que arrependimento dela ‒ ou iria à polícia. O nome que recebera, o quarto repleto de cores e motivos, a família que logo se lhe afeiçoara, a felicidade começada, tudo se ia abandonar, como em uma morte prematura. Percorrer as quatro horas de retorno foi penoso, até chegar na Tresidela. Desceu uns degraus de barro, cavados no barranco, para alcançar a Rua da Vala, e duas esquinas adiante, avistou o casebre descrito. Dentro, quase nada; de taipa e palha, sem piso; sem berço, sem fraldas, sem panos; só a parturiente e uma sobrinha de uns oito anos. Ao canto, sobre um desengonçado fogão, panelas com as bocas da fome abertas e nenhum sinal de comida. Um odor nauseabundo rescendia da vala, destemperando o ar quente e abafado; o coração se apertava dentro do peito, a quase não se conter. Deitou a filha e umas palavras gentis sobre o colo da mãe, com um último mimo, um último beijo, um último adeus, e partiu, tecendo nos lábios uma oração. Antes de subir os degraus de barro, ainda olhou para trás e pensou em voltar. Sentia-se culpada, como se fosse um abandono. Não, não podia. Do barranco, contemplou o rio e desabou num pranto convulsivo. "Perdoa, filhinha".

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