quarta-feira, 7 de março de 2012

Causa mortis


Faz tempo. Primeiro, uns adjetivos; depois, uns substantivos; por último, uns verbos. Perdeu ou lhe roubaram. Sem certeza. Só restaram uns pronomes, umas interjeições. Aos poucos, emudeceu. Calou, embora ouvisse os gritos do mundo. As palavras eram-lhe tudo, e não as tinha mais. Macambúzio, não sabia onde procurá-las. Por lhe faltarem, rareava pensamentos, abortava ideias, fechava conversas. Sentia-se vítima de algum ensaio sobre a mudez, em outras linhas de Saramago. Resoluto, deu queixa.

Um roubo de palavras?, caçoou o delegado. – Cárcere, tortura, interrogatório, processo; lembras dessas?

Sem atinar para o tom malicioso, demorou-se um pouco em memórias, e assentiu, recheando as palavras com lembranças. – Usei-as num libelo contra a ditadura... na chegada do Neiva. Esticou o olhar, puxou um breve suspiro e falou das fortes frases de efeito, da Deodoro apinhada de gente, do silêncio comovido dos ouvintes, da emoção de escrever história com o retorno dos exilados.

O delegado deixou-se fisgar pela lembrança e achou interesse em dizer que, naquela ocasião, era estudante do Liceu, e saíra da aula para ver “os comunistas” na praça.

Desse ponto, a conversa encaixou-se em algumas dúzias de frases, nos trilhos da cordialidade possível no ambiente de uma delegacia. Até sentiu-se acolhido, embora não compreendido. Tornou a insistir que não podia viver sem as palavras. Deprimindo-se, quase não completa a ideia de que preferia a morte ao desespero de habitar-se em silêncio.

A autoridade, maquinando alguma ajuda, sugeriu a leitura de Drumond, Machado, Mia Couto, Dostoiévski, Nietzsche, Camus, Manoel de Barros e outros. – Toma-lhes emprestadas aquelas tantas palavras.

Já tentei, murmurou o homem, abrindo um livro de Guimarães Rosa, sob os olhos do delegado, que se foram arregalando de espanto.

Cadê as palavras?

Como lhe disse: sumiram!

Espera aí!... Vamos com calma... Tenho por aqui um romance... Deixa-me ver... Aqui!... Esse!... Cais da Sagração!... E, olha,... está cheiinho de palavras.

Posso?

O delegado passou-lhe o livro, mas à medida que ele o folheava, as páginas perdiam a tinta, a cor, as letras, as palavras. Tudo ia ficando branco no branco. Quedou-se atônito. Confuso, diante do burburinho que o sumiço das palavras levantou na repartição, nem percebeu quando o homem saiu. De tudo se comentava, que o tal deveria ser um louco, um mágico, um ilusionista, um escritor sem inspiração. Porém, na dúvida, teve dó, sob a inquietação de como poderia alguém suportar a vida, se lhe fossem roubando as palavras? Naquele local, o tempo era nenhum para se pensar na falta que fazem palavras. Logo vieram a mulher agredida, o celular furtado, a tentativa de assalto, a criança desaparecida, a clonagem de cartão, e a repetição das mesmas coisas.

Feita a noite, antes de alcançar o estacionamento, avistou pequena multidão rente à calçada do supermercado. Um homem. Um corpo. Um morto. Anunciou-se delegado e abaixou-se para tentar identificá-lo. Recolheu a carteira do bolso da calça; abriu-a, e apavorou-se quando viu que os documentos estavam todos em branco, sem palavras, sem fotos. Rapidamente, desvirou o morto.

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