terça-feira, 6 de março de 2012

Um grito


PODERES IMOLADOS
Por Ricardo Van Der Linden Coelho, promotor de justiça em Pernambuco*

Algo de muito grave está acontecendo de forma silenciosa e sorrateira na República, a ameaça ao estado democrático de direito pelo desmanche do Poder Judiciário e do Ministério Público, orquestrado pelo Legislativo com a conivência do Executivo federal. O “modus operandi” desta ação deletéria se dá pela negativa de votar projetos de interesse do Judiciário e Ministério Público e pela aprovação de projetos que suprimem poderes, garantias e prerrogativas de seus membros com a inequívoca intenção de subjugá-los aos demais Poderes.

No estado democrático de direito, o poder estatal é limitado pela lei, não sendo absoluto. O controle desta limitação se dá através do acesso de todos ao Poder Judiciário, que deve possuir autoridade e autonomia para garantir que as leis existentes cumpram o seu papel de impor regras e limites ao exercício do poder estatal. A hipertrofia do Judiciário atinge o Ministério Público que o aciona para garantir o “império da lei”.

O poder do Estado é uno e indivisível. A função do poder se divide em três grandes funções: a função legislativa, a função judicial e a função executiva. O estado de direito é uma situação jurídica onde cada um é submetido ao respeito do direito, do simples indivíduo até a potência pública. O estado de direito é assim ligado ao respeito da hierarquia das normas, da separação dos poderes e dos direitos fundamentais.

O Poder Executivo não correspondeu às propostas orçamentárias do Judiciário e Ministério Público, prejudicando a estruturação destes órgãos, com consequências negativas à qualidade da prestação jurisdicional. Quem perde com isso é o cidadão. A Justiça continuará sendo objeto de uma elite que pode contratar bons advogados para defender seus interesses em foros privilegiados. Ao necessitado restará a Defensoria Pública igualmente imolada.

A magistratura e o Ministério Público lutam há 05 anos pela recomposição monetária dos seus subsídios. O índice pleiteado de 14,79% parece elevado, mas se você divide por 05 anos dá um percentual de pouco mais de 2%". O índice de inflação oficial acumula mais de 32%. A Constituição nos arts. 37, X e 95, III assegura a revisão anual dos subsídios e a irredutibilidade dos vencimentos. O estado democrático de direito não pode prescindir da existência de uma Constituição que seja respeitada.

Luta-se também pela dignidade de um sistema previdenciário que assegure a integralidade das aposentadorias. Não lhes é assegurada a aposentadoria especial por tempo de serviço, apesar da condição de risco pessoal pelo desempenho da profissão. Com o Projeto de Lei n. 1.992/07, pretende-se ultrapassar o limite do tolerável para entregar a previdência de agentes políticos ao capital financeiro.

Hoje magistrados e membros do MP aposentados estão sujeitos ao teto do INSS, tendo na velhice uma brutal redução do seu padrão remuneratório. Não possuem adicional por tempo de serviço e nem adicional de periculosidade por trabalhar em locais inóspitos, muitas vezes afastados da família. As escalas de plantão são permanentes e sem direito a compensação dos dias trabalhados em feriados e finais de semana.

Luta-se contra a ausência de uma política de segurança capaz de garantir a integridade física e a higidez mental de seus membros, que atuam inteiramente expostos à ação de meliantes cada vez mais armados e organizados, com infiltrações dentro do próprio aparelho estatal como ocorreu com a juíza Patrícia Acioli ou com o Promotor Rossini Couto, assassinados por policiais militares.

A magistratura vive uma situação peculiar. Necessita atualizar a sua anacrônica Lei Orgânica de 1979, elaborada no regime militar. Tem o projeto de lei pronto e simplesmente não pode enviá-lo porque teme que os parlamentares deturpem o seu conteúdo e suprimam garantias históricas piorando a situação atual que já é crítica. O envio do PL seria um “cheque em branco” a portadores não confiáveis.

Luta-se pela construção legislativa de um sistema jurídico capaz de acabar com a impunidade. A ineficácia de nossa legislação criminal é tamanha que por inferência lógica a entendemos como uma ação deliberada de quem se beneficia dela, seja no Parlamento ou fora dele subsidiando custosos mandatos.

Nada que se refira a Magistratura ou Ministério Público transita com facilidade no Congresso. As razões da leniência do Congresso são óbvias. Um em cada cinco deputados responde a algum tipo de processo movido pelo Ministério Público para julgamento no foro privilegiado do Supremo Tribunal Federal (STF). Dos 566 deputados, 114 são alvos de investigação na mais alta corte do país.

Esses parlamentares acumulam 243 inquéritos e ações penais, de acordo com levantamento exclusivo feito pelo “Congresso em Foco”, sem contabilizar os processos contra parentes e apaniguados envolvidos em uma política patriarcal e oligárquica como a nossa. Mandatos não são mais conquistados. Obedecem cada vez mais a regra do “Ius sanguinis” em detrimento do “Ius meritum”.

Entre as acusações contra parlamentares, há de tudo um pouco: trabalho escravo, corrupção passiva e ativa (principalmente), peculato, prevaricação, estelionato, crime contra o sistema financeiro e a ordem tributária, coação, lesões corporais, crime contra a liberdade pessoal, crimes eleitorais e improbidade administrativa.

A frase de Ihering em seu "Der Kampf ums Recht" ou “A Luta Pelo Direito” é oportuna para definir o momento atual: “O fim do Direito é a paz, o meio de que se serve para consegui-lo é a luta. Enquanto o direito estiver sujeito às ameaças da injustiça – e isso perdurará enquanto o mundo for mundo –, ele não poderá prescindir da luta. A vida do direito é a luta: a luta dos povos, dos governos, das classes sociais, dos indivíduos”.

O momento é de luta, o mesmo autor adverte que "quem rasteja como um verme não pode se queixar de ser pisoteado." O silencio dos bons tem nos preocupado. A subserviência de nossos lideres também. A imagem que se vende é a de categorias privilegiadas. A realidade é que magistratura e Ministério Público agonizam e lutam pela preservação de sua força, independência e dignidade.

É preciso se discutir, sem submissão, uma nova relação entre os poderes, baseada no diálogo e na harmonia. O nosso artigo é um grito, um pedido de socorro e um alerta à sociedade. Hoje, magistratura e Ministério Público são poderes seriamente imolados.

*Publicado originalmente no blog do autor. Ricardo Van Der Linden Coelho é Promotor de Justiça. Mestre e PHD em Direito Público. Email: rvdvcoelho@yahoo.com. Twitter: ricardovlcoelho. 


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