terça-feira, 30 de novembro de 2010

Partida

O sangue fluía da mãe do corpo para as compressas e cobertas, e o brilho dos olhos cedia a alma para os anjos da morte; só pouco antes, a bem pouca voz confiara um súplice não me deixe, ao médico que, ante a visão daquele incontrolável rio vermelho, experiente, antecipara em seu íntimo o desfecho da discrasia sanguínea. O parto não fora bom e não demorou o pior desfecho. As manobras de ressuscitação haviam incluído seu recém-nascido no rol dos vivos, retirando-o das veredas do limbo. Ouviu seu choro fraco e se fez forte, até mais não poder. Mas não havia sangue, nem doadores, nem tempo, nem volta, e deixou os vivos com suas culpas, na sala cheia de silêncio e lamento, no fim do corredor. Aos vinte anos dera à luz e se apagara, pondo fogo nos olhos do médico que, de encontro ao rosto no espelho do banheiro da sala de repouso, se envergonhara de perder uma vida no hospital do sertão, sem melhor estrutura, ainda a depender da sorte para tanger aqueles anjos.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Gramática

Se havia ódio, dele não fazia tempero com as palavras que alinhava na cautela ao relatar o aborrecimento de ontem com o filho. O atrevido nem se valeu de cerimônia, para em riste tachá-lo de mentiroso, e ainda desdenhou com acinte a proposta de tratarem a querela com uma autoridade, virando-lhe as costas, com outros dizeres vãos. Por hábito ou força da idade que roçava os oitenta, tecia o caso sem pressa de ver o fim, como se dedilhasse nas mãos o invisível rosário do tempo, na ilusão de conter o futuro. Quando engasgou nos fatos sobre o passamento da esposa, foi possível intuir que o filho estava fazendo carga para receber o quinhão, em contraponto aos outros cinco que se mantinham naquela obediência filial que agradava ao velho. Era pouca terra, nem duzentos hectares, mas queria o seu e queria logo, pois, inteirados três anos, a ruindade da morte fluíra para a agonia dos vivos, na repartição dos despojos. Compreendia o direito do filho, só não aceitava aqueles substantivo, adjetivo, verbo, advérbio. Ali, sucumbia mais uma vítima da gramática, por onde começam tantas guerras diárias, familiares ou não.

domingo, 28 de novembro de 2010

Resposta (2)

Em 31/08/10, publicamos representação dos colegas promotores Themis Maria Pacheco de Carvalho e Cláudio Alberto Gabriel Guimarães em face do colega juiz José dos Santos Costa. No outro dia, em 01/09/10, publicamos a resposta do juiz. Agora, em 26/11/10, a Corregedoria do Tribunal informou que a representação que lhe foi encaminhada concluiu que não vislumbrou, no caso, qualquer desvio funcional atribuível ao representado. Veja:

"A Corregedoria Geral da Justiça (CGJ) arquivou representação contra José dos Santos Costa, juiz auxiliar respondendo atualmente pela 7ª Vara Criminal de São Luís, e protocolada pelos promotores de justiça Themis Maria Pacheco de Carvalho e Cláudio Guimarães.

Os promotores requereram a apuração da conduta do magistrado quanto a sentença em que determinava a extinção de processo em tramitação na 7ª Vara Criminal, por julgar procedente a arguição de litispendência (quando se ajuíza uma nova ação que repita outra que já fora ajuizada, sendo idênticas as partes, o conteúdo e pedido formulado).

De acordo com relatório da CGJ, “não foi vislumbrado no caso qualquer desvio funcional atribuível ao representado”.

Litispendência – Ainda segundo o documento, na ocasião marcada para a audiência instrutória do processo nº 23.546/2008, em que figuram como réus Evandro de Sá Sousa e Edmundo Teixeira de Freitas, foi arguida oralmente pela defesa a litispendência da ação com o processo 23.547/2008, da 6ª Vara Criminal (que tem os mesmos réus do processo da 7ª vara), após o que o processo seguiu com vistas para o Ministério Público (MP).

A promotora com atuação na 7ª Vara Criminal Marica Moura Maia aduziu em parecer “tratarem-se de ações penais fundadas no mesmo fato criminoso”. Pela circunstância da ação na 6ª Vara ter sido ajuizada antes daquela que tramita na 7ª Vara criminal, requereu a extinção do processo dessa última.

O pedido foi acolhido pelo juiz. Com a decisão, o processo seguiu com vistas ao MP.

“Em que pese ter sido apresentado pelo MP recurso em sentido estrito fora do prazo, o juiz, observando as argumentações ali expostas, entendeu por bem utilizar-se da retratação para reformar a decisão, após o que o processo voltou a tramitar regularmente”, concluiu a CGJ.

A Corregedoria ressalta que, embora o MP seja órgão uno e indivisível, chama a atenção o fato da representação ter sido protocolada neste órgão correicional no último dia de prazo para recurso, “evidenciando que seus representantes laboram em manifestante conflito, o que não é razoável para a instituição”.

Fonte: Marta Barros - Assessoria de Comunicação da CGJ


quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Professor

Naquele tempo, o que fosse de interesse, corria pelas dependências da justiça. Além dos processos criminais, querelas, registros e casamentos, boa parte do nem te conto, que movimentava as ruas da Ponte ao Brejo, nascia, morria ou ressurgia ali. O Professor não se entregava. Juiz de paz compenetrado, punha ao centro um surrado breviário, do qual pinçava admoestações bíblicas, poesias gongóricas e receitas de afeto, ― antes de colher os sins e os beijos dos nubentes ―, repetidas sem pujança, mas louvadas pelos padrinhos e convivas que, empertigados em suas roupas de ocasião, lotavam a sufocante sala de audiências do Fórum. Algumas lágrimas selavam as emoções, sempre. O estilo solene rendia bons comentários nas bodas dos mais letrados; os tansos só viam a demora do nhenhenhém. Naquela sexta-feira, não faria diferente, mesmo diante da pouca gente e do ar inquieto da escrivã. À sua frente, Luís e Luzia, ela mais jovem e ansiosa; ele, olhar longe, frio. O Professor fala de Deus e da costela de Adão, do amor que tudo suporta e supera, da beleza do lar, da alegria dos filhos, da força do sim pra toda a vida; se agita em versos, se emociona, se enleva em prece, mas não consegue trazer aquele olhar, e parte, assim, vencido, para os ritos finais: Luís, é de livre e espontânea vontade que... Não!, interrompe o noivo, e sai; ela, desaba em pranto. Na segunda, ainda era a notícia.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Tempos

Talvez um medo obrigatório o tenha impelido a descortinar a amazônia, onde até Deus sentiria dificuldades de encontrar o rumo naquelas terras. Queria uma fronteira que pudesse servir de exílio, se os olhos de Vargas imitassem os do todo-poderoso, e foi se arranchar rente à Bolívia, argumentando a eventualidade dos humores do Catete. As águas do Parnaíba conheciam sua convicção comunista, pois elas o viram abandonar Floriano em prantos, quando a noite se fez mais turva, porque não podia deixar de sê-lo; antes, a morte, dizia aos mais chegados, que admiravam-lhe a coragem, mas não acreditavam no pior; consolavam-no com tudo passa, em mira de colher uma desistência que não vingou. Tinha mulher e filhos e por lá gerou outro tanto que, meticulosamente, encarregou-se de repatriar, crescidos, para a ilha do Maranhão. Quando, enfim, decidiu voltar, entraram os coturnos de 64. Ficou.

sábado, 20 de novembro de 2010

Innovare

Prezado Juarez,

Considerando que nada mais daquilo que faço em Codó está sendo noticiado no site do MP, gostaria que o nobre colega publicasse em seu prestigiado Blog que, ontem, sexta-feira (17/11), foi realizada a apreciação das práticas inscritas no Prêmio Innovare 2010, sendo que a única inscrita pelo MP/MA é o "Projeto MP nos Bairros", desenvolvido em Codó, desde o mês de outubro de 2009. A reunião da Comissão julgadora ocorreu no Hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, sendo integrantes da mesma, dentre outros, o ex-Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, os Ministros Gilmar Mendes, Aires Bryto, representantes da OAB, AMB, AJUFE, CONAMP, etc. A divulgação do resultado e premiação ocorrerá em cerimônia marcada para o dia 03 de dezembro de 2010, no STF. Concorremos na Categoria "Ministério Público".

Obrigado pela atenção.
Gilberto Câmara

Obs.: ainda acredito no MP feito por nós

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Caçula


Poderia escrever os mais tristes versos, como o fez Neruda naquela noite; ou cantarolar as cordas do violão do vô: “saudade, palavra triste quando se perde um grande amor”.

Não há ontologia deontológica imprópria do positivismo reverso, ou seja, mestrado, que equacione a ausência da sua voz e a conversa de varanda que serena nossa noite do olho d'água. Da próxima, prefiro ser filha, pois meu coração agora é rasgo, sem possibilidade psicanalítica de reparação.

Para quem tem um pai como o meu, a saudade, mais que simples ausência, é como vício, um dia de cada vez.

No ritual, não olho o calendário, nem pergunto que dia é hoje, na ilusão sensorial de se fazer 2011, em São Luís, ao seu lado, outra vez. Espero que o tempo compreenda e desafie o próprio tempo, pois não há Paris – ou mundo - perto do seu encanto.

Fazer o que, nasci caçula.

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E eu, hein, o que vou dizer?
A cumplicidade que me permites contigo me faz viver outra vida.Tenho fugido de me encontrar com a saudade porque conheço sua dor. O que me alegra demais é saber que estamos juntos sempre. E sempre é logo ali.

Que sorte: nasci teu pai!
Mil novecentos e sessenta e dez beijos.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Espetada!

Publicado no Blog do Itevaldo:

Foto de arquivo: "Espeto de Pau", em 26-09-09

“Custando 5,6 vezes mais do que o valor licitado em 2007, a obra e reforma do “espeto de pau” ou prédio sede das Promotorias da Capital sairá do papel. No próximo dia 25, a Procuradoria Geral de Justiça (PGJ) abrirá os envelopes da licitação do majestoso prédio.

Distante do R$ 1.367.456,98 que deu a vitória a construtora Castelo Branco Serviços de Engenharia e Construtora Ltda, os serviços “de obra de conclusão da recuperação e reforma geral” custará R$ 7.473.075,73 milhões às burras da PGJ.

De 16 de janeiro de 2008 até hoje muito papel sobre o “espeto de pau” se produziu no Ministério Público (releia aqui). Foram produzidas Notas de Empenho, Notas Fiscais – tudo atestado pela seção de Obras, Engenharia, Arquitetura – sindicância e processos administrativos na PGJ, mas o silêncio domina a cena.

O Ministério Público torrou R$ 567.219,36 na não-obra do “espeto de pau”. Desse montante, R$ 215.210,70 foram pagos por serviços extras e outros R$ 17.063,92 liquidaram serviços não executados (releia aqui). E ninguém por lá se atreveu a dizer qualquer coisa.

Mas, às 10h, da próxima quinta-feira (dia 25), será aberto o envelope “nº 1” com a habilitação e o envelope “nº 2” com as propostas de preços das empreiteiras concorrentes. O prazo para a execução da conclusão da recuperação & reforma será de 360 dias a contar do recebimento da Ordem de Serviço.

A direção da Associação do Ministério Público do Maranhão (Ampem) instalou próxima à sede das Promotorias da Capital uma placa exigindo a conclusão da obra parada há 884 dias.

A placa tem os seguintes dizeres: “Sede das Promotorias de Justiça da Capital serviços parados há mais de 884 dias. Exigimos a conclusão desta obra. Ampem”.

E o que ficou para trás nesses últimos dois anos, será empurrado para debaixo dos escombros? Envergonha-se quem tem vergonha.”

Acesse o original aqui.

Livro

A colega Maria de Jesus Rodrigues Araújo Heilmann é autora do livro “Globalização e o novo direito administrativo”, a ser lançado nesta quinta-feira (18/11), às 19 h, no Palácio Cristo Rei, como resultado de sua dissertação de mestrado pela Universidade de Lisboa, publicado pela Editora Juruá. Ingressou no Ministério Público do Maranhão em 1992. É doutoranda da Universidade de Barcelona, com Diploma de Estudos Avançados (DEA) na área de Direito Administrativo (2007); Mestra em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, na área de Ciências Jurídico-Políticas (2008); Especialista em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, em parceria com a Escola Superior do Ministério Público do Maranhão e Associação dos Membros do Ministério Público do Maranhão (1998/1999).

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Mais

Mais um blogueiro. Marcelo Silva Moreira é Juiz de Direito no Maranhão. Professor de Direito Civil, já lecionou em cursos de graduação, pós-graduação e na Escola Superior da Magistratura do Maranhão - ESMAM. Autor do livro "Eleições e Abuso de Poder" (Aide Ed.). Acesse o blog marcelosilvamoreira.com.br

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Muros

À noite, uma brisa fria abandona os braços do mar e invade as ruas do Tambaú rumo à Lagoa, em busca de aconchego. Intercalando as inevitáveis construções verticais, diversas casas se destacam por um detalhe: muros baixos; ― em João Pessoa, o olhar do viajante não dispensa observá-los ―, um pouco acima da cintura ou quase à altura dos ombros ou da cabeça, por sobre os quais se divisa o jardim, o terraço, o interior da morada. Quem assim os fez não queria privar os olhos, da rua, dos transeuntes, do bulício. Ali, felizmente, ao que parece, a indústria de gente-com-medo-de-gente ainda não se impôs completa. Neste final de semana, a cidade recebeu quase oitocentos atletas para a nona edição nacional do torneio de futebol do Ministério Público. O Maranhão teve participação pífia. Pudera! Para impedi-la, muros de intolerância e humilhação foram erguidos sob a chancela do medo. Muros deveras altos. Para o mesmo fim, a soberba e a prepotência usurparam a capa do poder e se fundiram na alcova da vaidade, que nem os apelos do procurador-geral anfitrião puderam despertar. Ele, também, chuteira e suor, à saída do gramado, fez-se solidário com nosso infortúnio. Quiçá tenha sido a última participação dos maranhenses em torneios, pelo menos enquanto nossa potestade não resolver sua paixão pelo espelho. Cedo ou tarde, muros são derrubados. Um empurrãozinho.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Ao bispo

O Sindicato dos Servidores do Ministério Público do Estado do Maranhão – SINDSEMP-MA, vem a público denunciar ataques à liberdade de organização sindical perpetrados pela Procuradora Geral de Justiça do Estado do Maranhão, Maria de Fátima Rodrigues Travassos Cordeiro, que, mesmo após a publicação do Registro Sindical nº. 46223.007132/2008-12, concedido ao SINDSEMP-MA, nega-se a assegurar a implantação de desconto em folha das contribuições mensais dos sindicalizados, bem como o afastamento do dirigente sindical para o cumprimento do mandato sindical classista.

Em 2008, alegando a ausência de Registro Sindical do SINDSEMP, a Procuradora Geral negou a implantação de desconto em folha das contribuições mensais dos sindicalizados, bem como negou o afastamento do dirigente sindical para o cumprimento do mandato sindical classista.

Após quase 02 anos, o SINDSEMP-MA obteve o Registro Sindical, publicado no Diário Oficial da União, pág. 78, dia 21/09/2010, e imediatamente, dia 23/09/2010, protocolou Ofício solicitando juntada do Registro aos Processos Administrativos sobrestados, aguardando a conclusão administrativa depois de juntada do documento do Ministério do Trabalho.

Passados mais de 40 dias, desde 23/09/10, não houve qualquer manifestação da Administração Superior nos Processos Administrativos, ou atendimento dos pedidos iniciais.

Repetimos aqui a fundamentação dos pedidos. O Estatuto do Servidor, Lei nº 6.107 de 27 de julho de 1994, diz que:

“Art.282. Ao servidor público civil são garantidos o direito à livre associação sindical e os seguintes direitos, entre outros, dela decorrentes:

d) de descontar em folha, sem ônus para a entidade sindical a que for filiado, o valor das mensalidades e contribuições definidas em assembléia geral da categoria.”

E afirma a Constituição Estadual, art. 19, § 8º:

“A Administração Pública direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes do Estado e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, também, ao seguinte:

(...) § 8º - O servidor público eleito para o cargo de direção de órgão de representação profissional da categoria será automaticamente afastado de suas funções, na forma da lei, com direito à percepção de sua remuneração.”.

Os atos da Procuradora Geral ferem o princípio da legalidade e caracterizam uma perseguição ao Sindicato e um ataque ao direito de organização e liberdade sindical, algo descabido para o órgão que é o Fiscal da Lei e guardião dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988.

São Luis, 10 de novembro de 2010
SINDSEMP-MA

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Por engano


Nervoso, bastante, pedia conselhos. Uns diziam sim, poderia ser preso; outros, coisa pior. Numas encenações secretas, treinava abordagens. Várias vezes, iria, mas faltavam pernas e palavras. Na hora agá, o intestino não segurava. Vivia no chá de boldo. Dormia na maracujina. “Vais mofar na cadeia! Ha-ha-ha-ha!”, era a voz, em seus pesadelos. Tremia e temia, embora certo. Pensara em terceirizar a cobrança, mas não achava o artista que tivesse topete para emplacar o texto: “Excelência, vim buscar o televisor que, por engano, o senhor trouxe da pousada do Aristides”. Precisava acreditar que fora por isso. No íntimo, nenhuma dúvida. Começava o dia, empolgava-se: “É hoje!”; depois, suspirava: “Amanhã!”. Sem lembrar como, de repente, estava naquele gabinete, diante de deus. Esfregou as mãos em busca de forças, que logo se esvaíram, ao divisar sobre a mesa o dorso reluzente de um Código de Processo Penal. Amarelou. E foi “sim, excelência”, "pois não, excelência", “certo, excelência”, até a exaustão. Televisor, necas.

domingo, 7 de novembro de 2010

Homem e mulher


Partirá, com certeza, mas não demonstra pressa. As dores, os pigarros e os queixumes miúdos, parece, ainda, não lhe fazerem companhia. Ao contrário, precede-a o riso fácil, a palavra animada, o bom humor, tão cheia de apetites, como se a eternidade pudesse ser tapeada. Gente ao tempo dos bolcheviques; na certidão o ano é 1915. Comparece para ajudar a vencer algumas dúvidas sobre datas e nomes da família. A boa memória põe tudo em ordem, e empolga-se de satisfação ao responder sobre o marido: “Está morando debaixo do chão!”. Ri que ri, agregando espanto ao derredor: “Seu Doutor, preguiça não se cobiça!”. E, com ar mais severo, justifica seu suspiro de vingança sem remorso, num arremate: “Era preguiçoso; um grande preguiçoso, isso era!”. Sem deixar órfã a curiosidade, relembra que o de cujus a abandonara muito nova, com uma penca de filhos, porque ele não queria mais botar roça. Para criá-los, teve de se haver como o homem e a mulher da casa, quebrando muito coco pra tirar azeite. Por esse orgulho de sobreviver aos tempos dilatados da agonia, lentamente, exibe as mãos: “Com essas, não perdi nenhum.”

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Travessura

Imaginava que seria o caso de alguma diligência a ser cumprida à ultima hora, quando o recado chegou à porta do fórum, que sua excelência precisava falar-lhe, que fosse à sala de audiências, sem demora. Não seria bem isso, mas, talvez, fosse. Pelo sim, pelo não, melhor ir logo, pois “deus” era meio difícil, que até o parquet se esquivava de suas idiossincrasias, guardando silêncio ou fingindo cegueira, para não borrar a caderneta do bom relacionamento entre as altas figuras da comarca, quanto mais ele que há pouco chegara ao posto de meirinho, graças a uns arranjos que nem precisam ser anotados, ou podem ficar para outra oportunidade. Ou nada disso! É que saíra de casa preocupado com o filho que estava febril, depois de uns banhos escondidos no Mearim. Despistando a última baforada, entrou na sala e nem precisou se aproximar tanto para receber o encargo. Sua excelência foi enfático, irônico e cínico: “Ô, Josué, diz lá pro teu prefeito que ele só esqueceu de comprar os travesseiros!” Cravou-se o indispensável sorriso amarelo no oficial, para fingir que esse encargo lhe pertencia.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Negativa


― Não.

― Não é verdade que a página do Ministério Publico do Maranhão na internet esteja violando o princípio da impessoalidade e se transformando num blog de promoção pessoal.

― Não?


[Crédito da foto: Gilson Camargo. Atrizes Chiris Gomes, Maureen Miranda e Chiristiane Macedo, em cena de “Os Justos”, de Albert Camus, dirigida por Octávio Camargo. Cenário e figurino: Marcelo Scalzo.]

Um juiz

Era assim que funcionava. Uma boa lista prévia de fregueses garantia o suplício do boi. Sem esse boletim, a carne poderia ficar empatada sobre o cepo, para as moscas fecundarem prejuízos difíceis de suportar, naqueles anos de inflação sem cabresto. Faltava gado, minguavam consumidores e, no velho mercado, os magarefes driblavam a concorrência, se ajustando num rodízio para garantir o pão necessário. Chico da Engrácia iria matar um garrote na madrugada de quinta. Ciente, sua excelência apalavrou uns tantos quilos, pois era metade do preço da capital. O filé-mignon seria um mimo para aplacar certa ira da patroa, envenenada com a quase fama de suas peripécias sexuais na comarca. Contava com isso. O meirinho rasgou o que ainda era breu da noite em sua bicicleta até o matadouro, para conferir a pesada. Em vão. A conversa já se espalhara na espera do mercado: que Chico vendera o boi para um marchante de Colinas. Negócio bom danado. Boi em pé, dinheiro no ato. Os clientes sobreviviam a essas eventualidades. Sem gosto, mas sem aporrinhação, tentavam uma posta na lista de outro boi; pela sobra. Aí, sua excelência não quis entender. Sujando a boca com uma dúzia de adjetivos negativos que envolviam a mãe do magarefe, vaticinou-lhe a penetração forçada no orifício distal do intestino e asseverou-lhe o brotamento de protuberâncias córneas na fronte, imputando conduta desonrosa à esposa. No mesmo tom, reclamou a imediata presença do sargento Santana, que se fez a postos, com a cara ainda remelada e a roupa dormida, para dar cumprimento à sentença: que fosse à casa recolher o dito cujo. Feito, sua excelência aboletou-se na picape e levantou poeira das ruas de Mirador. Enquanto a manhã acordava, a fila do mercado subia curiosa até a delegacia; a cidade vomitava a sanha pelas esquinas. Dona Engrácia, à porta do xadrez, quase ao meio-dia, ainda pranto, arrumava a marmita do filho, com os olhos cerrados de indignação.

terça-feira, 2 de novembro de 2010