O texto abaixo é de autoria do juiz Rosivaldo Toscano Júnior, da 2ª Vara Criminal da Zona Norte, da Comarca de Natal – RN, publicado em seu blogue, em 12/01, sob o título Nosso Rol Secreto de Arrependimentos:
“Estava numa comarca do interior, no início de carreira. Deparei-me com o caso de um acusado que, juntamente com um desconhecido, ingressou numa padaria, anunciou um assalto, levou o dinheiro do caixa e, durante a fuga, tomou a moto de uma mulher, fugindo em disparada. A motocicleta foi largada um quilômetro depois.
A tese do Ministério Público era de tinha havido dois roubos – o da padaria e o da moto, o chamado concurso material de crimes. A tese da defesa era de crime continuado, em que se condena por um só crime, com um pequeno aumento pelo segundo.
Quando fui fazer a sentença, veio à cabeça uma dúvida não aventada pelas partes: se a moto foi subtraída com a intenção de apenas garantir a fuga, já que ela foi encontrada intacta e devolvida logo depois, seria justo condená-lo por isso? Não seria essa segunda pretensa subtração caso de post factum impunível e que não foi levantada pela defesa em razão do despreparo técnico do defensor dativo? Ou seria arrependimento eficaz?
Ainda inexperiente e inseguro, faltou coragem para rechaçar a pretensão do Ministério Público naquele momento, pois temia um possível apelo e a reforma da sentença pelo tribunal, que tinha uma linha muito dura nesses casos. Aí se deu meu erro: fui me aconselhar sobre a existência do post factum impunível logo com quem? Com o amigo e combativo promotor de justiça, que também chamamos de Parquet. Obviamente, como era parte na causa ele reiterou sua tese e procurou rechaçar as teses de crime continuado e de post factum impunível. Destacou que o acusado era reincidente e que também respondia por um furto cujo interrogatório já estava aprazado.
Informalmente, e sem perceber, aquele diálogo com o Parquet terminou sendo mais importante para a formação de um juízo sobre o destino da causa do que a leitura fria das razões das partes.
Um juiz deve perder tudo, menos a isenção. Por dar tratamento privilegiado ao Parquet em relação à defesa, foi exatamente isso que me aconteceu naquela tarde. Resultado: condenei o réu duas horas depois, amparando na íntegra a tese do MP de dois roubos qualificados, a uma pena de uns treze anos de reclusão.
O inconsciente, contudo, não me absolveu. Algo estava fora do lugar. Procurei, no início, racionalizar e justificar que aquele homem merecia a pena maior porque era degenerado. Mas depois passei a sentir um certo desconforto ao pensar no caso nos dias que se seguiram à assinatura da sentença. Ele foi crescendo. Até esperei um recurso da defesa, mas ela silenciou. Houve o trânsito em julgado e, assim, a decisão se tornou imutável. Não havia mais o que fazer. Logo depois me arrependi conscientemente da decisão. A angústia era sintoma de que havia cometido um grave erro: transigido com as minha próprias convicções. Senti a angústia em silêncio, na solidão da toga.
Dias depois veio o interrogatório do acusado no segundo processo que o envolvia. Era um furto cometido por ele na mesma época. Confessou tudo. Encerrada a audiência, ele pediu humildemente para falar comigo e disse, com olhos rasos d’água, exatamente o que eu não queria ouvir:
- Doutor, o senhor cometeu uma grande injustiça comigo naquele outro processo. O senhor me condenou por dois roubos, mas só peguei a moto para fugir! Eu depois a larguei com a chave na ignição.
Poderia ter me escondido por trás de uma resposta fria e ratificadora da decisão já tomada. Até me veio isso. Poderia simplesmente repetir os fundamentos do parquet. Mas não seria honesto com ele. Foi duro dizer, mas respondi:
- Você tem razão. Eu errei. Na época não avaliei bem. Analisando melhor hoje, não o condenaria pelo roubo da moto. E o pior é que não há nada a fazer em relação a esse caso. Já até estudei uma revisão criminal. Seria uma espécie de reavaliação do seu caso. Mas nem isso cabe porque embora concorde com você hoje, a tese do Promotor está juridicamente embasada e só caberia uma revisão se fosse uma coisa absurda.
Eu sabia que quando respondesse à primeira pergunta, seria fatalmente feita uma segunda. E já sabia até seu teor:
- Dá pra dar um jeito em relação a essa acusação de agora? Sei que vou ser condenado de novo.
- Saiba que se fosse possível, o faria, mas infelizmente não é possível compensar as penas. Cada caso é um caso. Saiba também que irei carregar comigo essa culpa.
O leigo não percebe, mas a função de julgar é, muitas vezes, indigna. Um ser repleto de imperfeições julgando o outro...
Foi duro, na posição de juiz, admitir o erro para o próprio acusado, mas acho que ele merecia essa consideração. Foi uma medida de respeito à sua individualidade. E essa abertura para com o outro me permitiu tirar uma lição a partir desse caso: o juiz deve sempre dar paridade de armas às partes.
Acho que essa experiência também me fez um juiz muito mais reflexivo, isento e atencioso com as partes e com as causas, respeitando as regras do jogo. A isonomia de tratamento das partes e a cautela para evitar prejulgamentos são as bases que que alicerçam uma decisão justa.
Agindo assim, diminuí, acredito, a probabilidade de novos erros. Mas não há como evitá-los de maneira absoluta: os tropeços fazem parte até mesmo das melhores trajetórias de vida. Saibam: somente os juízes absolutamente inexperientes não tem seu rol secreto de arrependimentos. E para alguns, inconfessáveis até para si próprios.
É como digo na chamada do blog: “Por trás da magnificência de uma toga há, na essência, sempre, um homem, igual a qualquer outro, repleto de anseios, angústias, esperanças e sonhos.”
4 comentários:
Acredito que esse relato poderia servir para uma discussão bem mais ampla, quem sabe uma reformulacão na lei que permita aos juízes reverem seus próprios processo quando reconhecido o erro.
Não sou da área, percebe-se, mas sou humana. Vejo que houve dupla condenação: do acusado prejudicado e do juíz que carrega a culpa do erro. Nem um, nem outro merecem.
Parabéns ao autor do texto!
É um relato interessantíssimo. O que mais transparece no corpo do texto é a humildade demonstrada pelo Juiz de Direito naquela situação.
Serve de modelo para todos os novos magistrados.
Embora o blog faça objeção a publicar comentários anônimos, neste domingo, recebemos um, que, pedindo vênia a nossos leitores, achamos oportuno publicar:
“senhor promotor,
peço licença pra fazer uma pequena pergunta. com tantas denúncias pipocando na imprensa (www.itevaldo.com e outros blogs) e isso afeta diretamente o MP, pq o senhor se mantém em silêncio?
desculpe a franqueza, senhor promotor, mas no tempo do dr. francisco, até um espirro era motivo de divulgação no seu blog. e agora? o que mudou?
a epígrafe em seu blog diz: o que me preocupa é o silêncio dos bons. ela nao seria aplicável a esse silêncio que se configura?”
A razão de publicar esse comentário é para manifestar minha perplexidade em relação ao uso do anonimato. Por quê?
O comentarista anônimo acima citado nos mandou outro comentário.
Adiantou desculpas por mais uma vez não se identificar e pediu que não o publicasse.
Disse que era uma forma de mandar uma mensagem para mim. Respeito. E se precisar entrar em contato comigo, pode mandar um email para juarezxyz@gmail.com. Estamos à disposição.
Quanto à indagação final de seu comentário, ela me deixou uma dúvida, será que o(a) dileto(a) leitor(a) não tem lido o blogue desde 13/06/08 para cá?
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