sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Uma questão de sintaxe


Artigo 155 do Código de Processo Penal – uma questão de sintaxe

Por Celso Coutinho, filho.
Promotor de Justiça da Comarca de São Bento-MA.

Iniciado pelo Supremo Tribunal Federal o julgamento da Ação Penal nº 470, mais conhecida como o “Processo do Mensalão”, terminologia que causa arrepios em alguns, não tardou para se instalar o debate a respeito da valoração dos elementos de informação colhidos na investigação. Vou tentar lançar luz na discussão, a partir da sintaxe.

Diz, expressamente, o artigo 155 do Código de Processo Penal: “O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”.

Recomenda a práxis interpretativa dos textos normativos-jurídicos que se parta do princípio de que as normas legais não trazem expressões inúteis. Assim, é impossível não notar que o art. 155 do CPP vale-se, em sua redação, da expressão “exclusivamente”.

Do ponto de vista morfológico, “exclusivamente” é um advérbio de exclusão. No entanto, o mais importante para a compreensão da mens legis trazida pelo art. 155 do CPP é saber, do ponto de vista da sintaxe, a função que o advérbio “exclusivamente” cumpre nesse texto legal.

Ora, poderia o legislador ter redigido o art. 155 do CPP sem o advérbio “exclusivamente” e ninguém estaria discutindo se o juiz poderia ou não fundamentar sua decisão nos elementos informativos colhidos na investigação. Seria irrefutável que não poderia. Vejamos como seria a redação do mencionado artigo, abstraído o advérbio “exclusivamente”. Teríamos: “O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”. Não tinha o que discutir. O juiz não poderia fundamentar sua decisão nos elementos informativos colhidos na investigação. E pronto.

Entretanto, quando o legislador lança no texto o advérbio “exclusivamente”, na função de um adjunto adverbial, tudo muda. Obrigados que somos pela sintaxe a esquadrinhar qual a função desse advérbio no texto legal, temos que admitir, nesse raciocínio, que a oração “o juiz não pode fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação” é muito distinta da oração “o juiz não pode fundamentar sua decisão nos elementos informativos colhidos na investigação”. Uma coisa é uma coisa. Outra coisa é outra coisa. Sintaxe pura.

Quando optou por inserir no referido texto legal (art. 155, CPP), na posição que lá está, o advérbio “exclusivamente”, o legislador quis dar intensidade ao verbo “fundamentar”, permitindo, assim, ao juiz que vá buscar, nos elementos informativos colhidos na investigação, fundamentos para sua decisão, seja condenatória ou, mesmo, absolutória, somente não podendo “fundamentar exclusivamente” sua decisão nesses elementos.

Não sendo, portanto, as provas colhidas em sede de investigação rejeitadas pelas provas colhidas judicialmente, pode o magistrado formar a sua convicção pela livre apreciação de todo o acervo probatório posto à sua frente.

A impossibilidade de condenação com base em provas colhidas na investigação somente se apresenta em casos que o juiz não possua outra prova que não seja a produzida na fase administrativa da persecução penal, senão as exceções da lei, ou que essa prova não esteja alinhada com o acervo probatório produzido em juízo.

Tomemos um exemplo. Na fase de investigação, o sujeito confessa a autoria de um crime, dando detalhes de todo o iter criminis. Ao chegar em juízo, esse sujeito, já na condição de acusado e, portanto, réu, retrata-se, negando essa autoria, sem trazer as razões para tanto, i. e., para essa mudança de versão. O mesmo vale para a testemunha. O que fazer? Tomar como imprestável o depoimento da fase investigativa e saudações? Claro que não. Pensar o contrário ofenderia a nossa inteligência. A lei não pode nos obrigar a isso.

Uma retratação em juízo deve estar acompanhada da devida e comprovada justificativa para a nova versão dos fatos. Deve estar sustentada em argumentos sérios e fundados que façam desacreditar as palavras iniciais. Deve, inarredavelmente, vir apoiada em elementos outros que ratifiquem o novo posicionamento. Não basta a cômoda estratégia de negar simplesmente os depoimentos pretéritos. Deve ser apresentado pela defesa do réu um fato que macule o depoimento prestado na fase de investigação. Refiro-me a fato, i. e., que a alegação possua substrato no campo concreto, retirando-se do plano puramente argumentativo, adentrando, ao menos, na esfera indiciária.

Não pode a esfera judicial querer monopolizar a verdade, como a única capaz de obter depoimentos dignos de credibilidade. Nem se pode pensar que o ambiente da investigação faça os depoentes experimentarem uma vontade irresistível de se desatarem a mentir.

Contudo, imbuídos de um espírito mais realista do que o rei, ainda veremos o Brasil querer ensinar lições de garantismo penal a FERRAJOLI, desfilando os doutos com o que tenho chamado de teses de escafandro (ou seria teses de carretel?). Enfim. Nós e nossas jabuticabas.

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