Por Sônia Maria Amaral Fernandes
Ribeiro, Juíza de Direito - São Luís
Tempos atrás, em artigo publicado
neste matutino, li uma história interessante que era mais ou menos
assim: no tempo em que Vitorino Freire detinha a liderança política
no Maranhão, no dia da eleição ele entregava a cédula de votação
para o eleitor, já preenchida, e o “direito” deste era de tão
somente colocá-la na urna. Numa dessas ocasiões, um eleitor mais
“curioso”, ao receber a cédula perguntou a Vitorino: “Doutor,
me desculpa, mas em quem eu estou votando?” Ao que Vitorino, de
pronto, respondeu indignado: “Quando já se viu isso? Vá lá e
bote o voto na urna.”
Pois bem, naqueles tempos, em regra, os
políticos tinham poderes quase absolutos. Hoje, se compararmos ao
tempo de outrora, esse poder felizmente está bem relativizado.
Com o avanço da tecnologia,
principalmente no campo da comunicação, a maioria tem acesso a tudo
que está acontecendo no mundo, em tempo real. E mais: essa mesma
tecnologia permite interatividade, o que faz com que todo mundo
opine, em tudo; que promova abaixo-assinados com participação de
milhões, como aconteceu, por exemplo, quando a sociedade se
mobilizou e conseguiu a Lei da Ficha Limpa; que crie páginas sociais
para defesa de grupos com interesses comuns, enfim, as possibilidades
são inúmeras.
Isso e muito mais, em última análise,
é democratização do poder, divisão do poder entre os
representantes (autoridades) e representados (cidadãos). Por via de
conseqüência, isso implica em legítimas cobranças e críticas.
Fiz essa introdução, para dizer que
hoje a máxima de que “poder não se divide”, tem validade
relativa e só é legítimo decidir solitariamente em algumas
circunstâncias. Por exemplo, em certas situações, a decisão da
autoridade pode desagradar um grupo, mas é justificada pelo
interesse público; no exercício da magistratura, todas as vezes que
o juiz decide, a parte perdedora, por certo, não ficará satisfeita
com a sentença, porém o julgador tem que seguir as balizas que as
provas e a lei impõem.
Entretanto, mesmo na magistratura, hoje
o espaço para divisão do poder é cada vez maior e até
incentivado. Para dar conta do trabalho que a sociedade exige, temos
nos valido, quando possível, de conciliadores, mediadores e
árbitros. Afinal, nossa missão é resolver as disputas em tempo
razoável, coisa cada vez mais complicada pelo volume crescente de
processos, logo foi preciso mudar a fórmula antiga e incorporar
novos parceiros.
Em face disso é que não entendo o
apoio da polícia à proposta de emenda constitucional (PEC 37/2011),
que impede que o Ministério Público e outros atores públicos
tenham competência para investigar.
Até onde sei, o contingente policial é
inferior à demanda. Na maioria das pequenas cidades do interior,
este se resume a dois policiais militares, sendo que um deles exerce
a função de delegado e o outro de carcereiro. Tanto é assim, que a
reclamação constante dos quadros das policiais é, com bastante
razão, o excesso de trabalho e o número reduzido de pessoal, o que
prejudica as investigações e resulta num índice baixo de
resolução, no universo de denúncias apresentadas.
Quantos cidadãos já foram vítimas de
pequenos delitos, mas, se muito, fizeram o boletim de ocorrência,
para preservar direitos, e nunca tiveram resposta da conclusão do
inquérito? Inúmeros. E sabe por quê? Porque a polícia não tem um
quadro de pessoal, de delegados a investigadores, suficiente para
tentar desvendar todos os crimes e acaba por focar nos mais graves.
Outro fato que, a meu juízo, vai de
encontro ao projeto de exclusividade nas investigações, é que os
delegados de polícia não detêm, a exemplo de juízes e promotores,
a prerrogativa da inamovibilidade, do qual mais de uma vez
declarei-me favorável.
Já escutei delegado de polícia
reclamar que foi removido, por contrariar interesse político em uma
investigação.
Em suma, será que, nesse cenário, a
polícia sozinha terá condição de investigar os crimes urbanos,
ambientais, fiscais, de improbidade administrativa e tantos outros?
Como os dois únicos policiais, de várias localidades, darão conta
de prevenir e investigar essa gama de crimes? E se, por mágica, eles
conseguirem dar conta da demanda, quando contrariarem interesses
poderosos, como garantir que não serão removidos e arquive-se a
investigação?
A história que conto na abertura,
deixa claro que o poder público era exercido por homens e mulheres
(algumas poucas), na convicção que o poder que lhes fora conferido
era de uso pessoal e o povo aceitava com naturalidade. Hoje, repito,
por mais que persistam os abusos e condutas inapropriadas na esfera
pública, a sociedade se recusa a aceitar como natural que os
detentores de cargos ou funções públicas se movimentem com o
propósito de assegurar interesses que trarão prejuízos à
coletividade.
Tomo a liberdade de trazer esse tema à
reflexão, pois tenho amigos e amigas na polícia, que exercem com
destemor e dedicação suas funções, não fazendo mais por conta
das limitações expostas.
O próprio autor da PEC 37, que tem
feito um trabalho excepcional no Congresso Nacional, é meu amigo e
sei do seu compromisso com a questão da segurança pública e dos
assuntos afetos à Justiça, por isso ouso sugerir que priorize a
luta pela reformulação da carreira dos delegados de polícia e
conquiste a inamovibilidade. Penso que essas mudanças são mais
importantes, pois excluem a possibilidade de ingerências indevidas,
e, como resultado, fortalece a classe e reforça o poder do cidadão.
Finalizando, quero destacar que o
recém-eleito Sumo Sacerdote da Igreja Católica, Papa Francisco, deu
um exemplo ímpar de desapego ao poder e humildade: após ser
escolhido, na sacada do Vaticano, este de joelhos pediu ao povo que
orasse por ele, para que consiga cumprir a difícil missão. Ou seja,
todos nós precisamos de ajuda, se o propósito em destaque é servir
melhor a coletividade.
*sonia.amaral@globo.com
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