FIM DA NOVELA: FICHA LIMPA É CONSTITUCIONAL
Por Rodrigo Pires Ferreira Lago, advogado.
Um ano e oito meses após a publicação no diário oficial da Lei Complementar n° 135/2010, a denominada Lei da Ficha Limpa, finalmente o Supremo Tribunal Federal conseguiu decidir sobre a sua constitucionalidade. Acabou a “A novela da Ficha Limpa”, título do texto publicado no blog Os Constitucionalistas, e onde consta sintética narrativa da batalha judicial que a lei enfrentou no Supremo Tribunal Federal até o reinício do julgamento encerrado no dia 16 de fevereiro de 2012.
Apesar do conteúdo da Lei da Ficha Limpa já ter sido objeto de análise pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em recursos decorrentes das Eleições 2010, nestas oportunidades não se enfrentou a constitucionalidade de todas as novas causas de inelegibilidade. Além disso, alguns votos se limitaram a discutir a questão da incidência ou não do art. 16 da Constituição, que afastaria a aplicação da lei para as Eleições 2010. E foi esse o resultado que prevaleceu no julgamento do Caso Leonídio Bouças (acórdão do RE n° 633.703), quando finalmente o STF superou os impasses decorrentes dos empates nos casos Roriz (acórdão do RE nº 630.147) e Jader (acórdão do RE nº 631.102). Os empates ocorreram porque naquela época o Tribunal estava composto com apenas dez ministros, pois havia uma cadeira vaga em razão da aposentadoria do ministro Eros Grau, e que só viria a ser ocupada em fevereiro de 2011, com a posse do ministro Luiz Fux.
E seria exatamente o ministro Luiz Fux quem viria a ser o relator das ações de controle concentrado de constitucionalidade sobre a Lei da Ficha Limpa. Foram propostas no Supremo Tribunal Federal três ações sobre a Lei da Ficha Limpa: a) Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADC n° 29, pelo Partido Popular Socialista – PPS, visando garantir a aplicação da lei a fatos pretéritos a sua vigência (inicial da ADC n° 29 e aditamento à ADI n° 29); b) Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 30, pela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, com maior extensão, para declarar a constitucionalidade da lei (inicial ADC n° 30); e c) ADI 4578 pela Confederação Nacional das Profissões Liberais – CNPL, impugnando apenas a causa de inelegibilidade da alínea “m” sobre a exclusão dos quadros de órgão profissional por infração ético-profissional (inicial da ADI n° 4578).
Em todas estas ações o relator, ministro Luiz Fux, adotou o “rito abreviado” do art. 12 da Lei n° 9.868/99. Por este rito, o STF não aprecia os pedidos de medida cautelar, os prazos para a instrução do processo são reduzidos, de forma que o Tribunal se pronuncie diretamente de forma definitiva sobre a lei.
Várias disposições da Lei da Ficha Limpa estavam em discussão, e não toda ela. É que o Supremo Tribunal Federal só conheceu das ações na parte que tratavam das causas de inelegibilidade, como será explicitado mais a frente. Ao final do julgamento, na parte que foram conhecidas as ações, a Lei da Ficha Limpa foi declarada constitucional, devendo as novas causas de inelegibilidade valer para fatos inclusive anteriores ao início de sua vigência.
Objeto de discussão
Logo no início do julgamento, o ministro Luiz Fux esclareceu que conheceria integralmente da ADI 4578, proposta pela CNPL, e também da ADC n° 29, proposta pelo PPS. Mas, quanto a ADC n° 30, proposta pelo Conselho Federal da OAB, só conheceria em parte. Eis o trecho do voto do ministro Luiz Fux que delimitou a controvérsia:
Observe-se, por outro lado, que a controvérsia judicial demonstrada cuida exclusivamente das hipóteses de inelegibilidade introduzidas nas alíneas “c”, “d”, “e”, “f”, “g”, “h”, “j”, “k”, “l”, “m”, “n”, “o”, “p” e “q” do art. 1º, inciso I, da Lei Complementar nº 64/90, por força da Lei Complementar nº 135/10. Não há demonstração dessa controvérsia para os demais dispositivos da Lei Complementar nº 135/10.
Portanto, somente os dispositivos indicados neste trecho do voto foram objeto de discussão no julgamento. Além destas disposições, que modificaram causas de inelegibilidade já existentes na Lei Complementar n° 64/90, e criaram causas de inelegibilidade, a Lei da Ficha Limpa modificou e acresceu outros dispositivos da lei. Mas estes outros pontos não foram analisados pelo Supremo Tribunal Federal, como será demonstrado mais adiante.
O julgamento
O julgamento foi iniciado na sessão do dia 09 de novembro de 2011, quando foi lido o relatório, foram produzidas as sustentações orais pelos advogados, ouvido o Procurador-Geral de Justiça, e lido o voto do relator, ministro Luiz Fux.
Pelo voto do Ministro Luiz Fux principia anunciando que o fato de ser uma lei decorrente de iniciativa popular não poderia ser desprezado:
Assim, não cabe a este Tribunal desconsiderar a existência de um descompasso entre a sua jurisprudência e a hoje fortíssima opinião popular a respeito do tema “ficha limpa”, sobretudo porque o debate se instaurou em interpretações plenamente razoáveis da Constituição e da Lei Complementar nº 135/10 – interpretações essas que ora se adotam.
E após sustentar-se em outras razões, afirmou o ministro Luiz Fux que as novas causas de inelegibilidade trazidas pela Lei da Ficha da Ficha Limpa deveriam ser declaradas constitucionais, aplicando-se inclusive para fatos ocorridos antes do início de sua vigência.
Uma condenação criminal havida em 2009, por exemplo, quando não existia a lei, poderia servir como fundamento para a impugnação do registro de candidatura nas Eleições 2012, com base na Lei da Ficha Limpa, que só entrou em vigor em 07 de junho de 2010. E era isso que ocorreria com Jader Barbalho, e outros candidatos, se o Supremo Tribunal Federal tivesse convalidado a interpretação do Tribunal Superior Eleitoral e aplicado a lei para as Eleições 2010.
Registre-se, porém, que o ministro Luiz Fux trouxe em seu voto originário duas ressalvas à lei. Propôs primeiro “declarar inconstitucional a expressão ‘o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar’ contida no art. 1º, I, ‘k’, da Lei Complementar nº 64/90”, introduzida pela Lei da Ficha Limpa. Desta forma, só ficaria inelegível o mandatário que renunciasse após a abertura do processo deimpeachment ou de quebra de decoro parlamentar.
A segunda ressalva feita pelo ministro Luiz Fux diz quanto à contagem dos prazos de inelegibilidade que tenham por origem decisões não transitadas em julgado em ações penais e ações de improbidade. A proposta do ministro Luiz Fux era “declarar parcialmente inconstitucional, sem redução de texto, o art. 1º, I, alíneas ‘e’ e ‘l’, da Lei Complementar nº 64/90, com redação conferida pela Lei Complementar nº 135/10, para, em interpretação conforme a Constituição” no sentido de que o prazo de inelegibilidade cumprido entre a condenação por órgão colegiado e o trânsito em julgado fosse abatido do prazo final de inelegibilidade.
O Tribunal estava desfalcado de um ministro, uma vez que a presidente da República ainda não indicara à sabatina pelo Senado o nome de quem ocuparia a cadeira vaga com a aposentadoria da ministra Ellen Gracie. Assim, receando um novo empate, que só desgastaria a imagem do STF e constrangeria o futuro indicado ao STF, que já o seria com a missão de desempatar o julgamento, o ministro Joaquim Barbosa pediu vista dos processos.
No dia seguinte a suspensão do julgamento, ao ser interpelado pela imprensa sobre as críticas que o seu voto recebera dos movimentos que defendiam a Ficha Limpa, o ministro Luiz Fux declarou: “Eu mesmo posso mudar. Você sempre reflete sobre a repercussão da decisão”. Foi o que noticiou a matéria da jornalista Débora Santos, do portal G1 (“Ministro do STF diz que pode mudar voto sobre Ficha Limpa”).
No dia 1º de dezembro de 2011, já tendo sido indicado ao Senado Federal o nome da ministra Rosa Weber para compor o STF, mas antes de sua aprovação e posse, o ministro Joaquim Barbosa apresentou o processo para julgamento no Plenário. É provável que o tenha feito com receio de ser necessária mais uma licença por motivo de saúde após ser empossada a ministra Rosa Weber, caso o seu nome fosse aprovado no Senado Federal.
O voto-vista do ministro Joaquim Barbosa divergiu em pequena parte do voto do relator, ministro Luiz Fux. Para o ministro Joaquim Barbosa, não haveria ressalvas a serem feitas na lei, que deveria ser declarada constitucional. O julgamento foi suspenso com pedido de vista do ministro Dias Toffoli, exatamente para evitar o indesejável empate, possível enquanto o Tribunal não estivesse plenamente composto.
Logo após a leitura do voto do ministro Joaquim Barbosa, o ministro Luiz Fux retomou a palavra para retificar o seu voto. Estava consumado o que anunciara à imprensa. Retirou do seu voto a primeira ressalva quanto a Lei da Ficha Limpa, no que diz respeito a alínea “k”. Não é demais lembrar que foi exatamente esta causa de inelegibilidade que serviu como fundamento para a impugnação de Joaquim Roriz, obrigando-o a renunciar a sua candidatura a governador do Distrito Federal, e Jader Barbalho, candidato a senador pelo Pará, e que só foi empossado após longa batalha no Supremo Tribunal Federal para afastar a aplicação da nova lei para as Eleições 2010.
O voto-vista do ministro Dias Toffoli abriu divergência em maior extensão, declarando inconstitucionais várias disposições da Lei da Ficha Limpa. Para o ministro Toffoli, haveria a “necessidade de aplicação do princípio da presunção de inocência às causas de inelegibilidade previstas na legislação infraconstitucional”. Em seu voto, o ministro ressaltou que a questão fora decidida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF n° 144 (acórdão da ADPF n° 144).
Em seu voto divergente, o ministro Dias Toffoli também propôs declarar inconstitucional a alínea “n”, que prevê a inelegibilidade a quem haja simulado desfazimento de vínculo conjugal para evitar a caracterização de inelegibilidade. E ainda declarava inconstitucional, sem redução de texto, a nova redação da alíne “g”, para afirmar que é do Poder Legislativo apenas, e não dos tribunais de contas, a competência para julgar contas dos chefes do Poder Executivo, ainda que tenham agido na condição de ordenadores de despesas.
Todavia, afastada as inconstitucionalidades que apontou em seu voto, o ministro Dias Toffoli entendeu ser possível aplicar as novas causas e os novos prazos de inelegibilidade a fatos ocorridos antes mesmo do início de vigência da lei. Neste ponto, acompanhou os ministros Luiz Fux e Joaquim Barbosa.
Após a divergência aberta pelo ministro Dias Toffoli, os quatro ministros a votarem na sequência já seriam suficientes a garantir maioria absoluta ao voto do ministro Luiz Fux, ao qual se somaria em parte o voto do ministro Joaquim Barbosa, pela declaração de constitucionalidade da lei, aplicando-se inclusive aos fatos pretéritos a sua vigência.
Isso porque, os ministros Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e Ayres Britto acompanharam integralmente o voto do ministro Joaquim Barbosa, sem qualquer ressalva.
Como de costume, o ministro Ayres Britto produziu mais uma frase de efeito: “Uma pessoa que desfila pela passarela quase inteira do Código Penal, ou da Lei de Improbidade Administrativa, pode se apresentar como candidato?”, indagou.
Já a ministra Cármen Lúcia acompanhou o ministro Luiz Fux, fazendo a ressalva sobre a contagem dos prazos. Com isso, a Lei da Ficha Limpa já contava com votos suficientes para ser declarada constitucional. Mas, com estes votos, ainda prevaleceria a pequena ressalva do voto do ministro Luiz Fux.
Coube ao voto do ministro Gilmar Mendes inaugurar a divergência na outra controvérsia mais relevante. Pontuou o ministro que “o legislador apanhou fatos jurídicos passados para modificar seus efeitos no futuro, em detrimento dos direitos políticos fundamentais de cidadãos específicos”. Ao final, asseverou que essa exegese violaria “o princípio da irretroatividade da lei”. Também em seu voto, inaugurou divergência sobre a inelegibilidade prevista na alínea “m”, que prevê a inelegibilidade de quem haja sido excluído da profissão por decisão de órgão profissional por infração ética-profissional.
No que diz respeito ao princípio da presunção de inocência, e também sobre a competência exclusiva do Poder Legislativo para o julgamento das contas prestadas pelos chefes do Poder Executivo, o ministro Gilmar Mendes acompanhou o voto do ministro Dias Toffoli.
O voto do ministro Marco Aurélio era o momento mais aguardado da sessão. Crítico contumaz de alguns aspectos da Lei da Ficha Limpa e de sua aplicação retroativa, foi o ministro Marco Aurélio, ainda no TSE, o primeiro ministro do STF a propor a não aplicação da lei para as Eleições 2010, tese que só seria reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal meses depois, já após a posse dos eleitos em 2010.
Todos esperavam que o ministro Marco Aurélio votasse pela inconstitucionalidade da lei na parte que dispensa o trânsito em julgado para fins de inelegibilidade. Mas a jornalista Mônica Bergamo publicara dias antes em sua coluna na Folha de São Paulo que o ministro Marco Aurélio, “que era tido como contrário à regra, votará, na verdade, favoravelmente a ela”. E de fato votou pela constitucionalidade da lei.
O ministro Marco Aurélio assentou não poder “endossar a postura daqueles que acreditam na morosidade da justiça e interpõem sucessivos recursos para projetar no tempo, visando não cumprir o decreto condenatório, o trânsito em julgado da decisão”. Com isso, acompanhou o ministro Joaquim Barbosa sobre a inexistência de ofensa ao princípio da presunção de inocência.
Entretanto, o ministro Marco Aurélio acompanhou o ministro Gilmar Mendes afastando a aplicação da lei para fatos pretéritos. Neste ponto, registrou: “Vamos consertar o Brasil de forma prospectiva, e não forma retroativa, sob pena de não termos mais segurança jurídica”.
Os ministros Celso de Mello, decano do Tribunal, e Cezar Peluso, presidente, também seguiram a divergência, nos limites impressos no voto do ministro Gilmar Mendes.
Ao final, prevaleceu a posição adotada no voto-vista do ministro Joaquim Barbosa, semelhante na conclusão com o voto do relator, ministro Luiz Fux, mas sem as ressalvas que este fizera no início do julgamento. Ou seja, a Lei da Ficha Limpa foi declarada constitucional sem qualquer ressalva ao seu texto. E também assentou o STF que as novas causas de inelegibilidade, e as alterações das causas de inelegibilidade já previstas na Lei das Inelegibilidades, poderão alcançar fatos pretéritos à sua vigência. Por ter sido vencido em parte insignificante de seu voto, incumbirá ao ministro Luiz Fux a tarefa de ser relator para o acórdão.
Assim, foi julgada improcedente a ADI 4578, e procedentes as ADC´s 29 e 30, declarando-se constitucionais as alíneas “c”, “d”, “e”, “f”, “g”, “h”, “j”, “k”, “l”, “m”, “n”, “o”, “p” e “q” do art. 1º, inciso I, da Lei Complementar nº 64/90, introduzidas pela Lei Complementar nº 135/10, admitindo-se a sua aplicação para fatos ocorridos antes mesmo do início de sua vigência.
Cabe registrar que esta decisão do Supremo Tribunal Federal acaba por tornar a aplicação da Lei da Ficha Limpa ainda mais severa do que vinha aplicando a jurisprudência do TSE antes da lei ser afastada do processo eleitoral de 2010. Por fim, não é demais rememorar que não foi a lei toda submetida ao crivo do STF, de forma que há outras disposições em seu texto de discutível conformação constitucional. Mas estes dois pontos serão objetos de exame em outra oportunidade.
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RODRIGO PIRES FERREIRA LAGO é advogado, conselheiro seccional e presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/MA. É membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), fundador e articulista do Os Constitucionalistas. Siga o autor no Twitter @rodlago e no Facebook.
Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF.
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