terça-feira, 3 de julho de 2012

O tênis


Na área externa à cozinha do fórum, o magistrado puxava um trago de baseado, quando a oficiala anunciou que todos já se encontravam na sala, apagou a bagana, guardou o toco na caixa de fósforos e entrou para a audiência do réu flagrado com quinze quilos de maconha numa casa ao lado da escola estadual, que em sua defesa alegava mulher, quatro filhos e uma avó doente, punha em relevo a importância do comércio que exercia, com produto livre de impurezas, que não comprometia a saúde dos usuários, uma entrega domiciliar que evitava a exposição dos clientes à violência das ruas e à concorrência desleal, e até sua excelência que era chegado poderia atestar a qualidade da diamba para ver que não estava ludibriando ninguém, e confidenciava em voz miúda que o médico, o presidente da câmara e o sacristão poderiam atestar o dito, o que pedia ficasse entre as quatro paredes, pois eram pontuais e pagavam bem. Um lero e outro lero, para esbarrar numa condenação certa: flagrante, confissão, testemunhas. A lei mudara recentemente, fumar, sim, vender e comprar, não, com direito a pequeno cultivo para consumo próprio. Enquanto simulava atenção à cantilena do advogado, sua excelência ia pouco a pouco se ausentando nas ideias, pois amanhecera o dia matutando, que aquilo não estava certo, logo na casa do juiz, então chamaria o delegado para uma campana, porque estava convencido que na noite anterior alguém mexera em seu pequeno canteiro de canabis, vira marcas no muro, o vigia assuntara um barulho, e as pegadas eram de tênis reebok, do mesmo tipo que sua excelência, agora, fixamente e meticulosamente, observava nos pés do promotor.

Um comentário:

Julio disse...

É, do jeito que as coisas andam não duvido chegarmos a isso.
Só faltou dizer que o traficante do conto respondia ao processo em liberdade, pois o flagrante foi convertido em liberdade provisória, e que na condenação a pena pode ter sido reduzida de 1/6 a 2/3, podendo até ter sido substituída por restritiva de direito ou, na pior hipótese, iniciada em semi-aberto.
Todo mundo feliz com o faz-de-conta.