terça-feira, 16 de agosto de 2011

Direito ao choro

"É comum no dia a dia forense, notadamente para aqueles que militam na área criminal, ocorrer a seguinte situação:

- Excelência, tem uns parentes do réu aí fora que querem muito dar uma palavra com o Senhor.
- Doutor, como o senhor pode ver, estou assoberbado de processos para despachar, então...
-...entendo, Excelência, mas é que eles não saem da porta do meu escritório. Rogo a sua compreensão.
- Mandem entrar.

Como é possível perceber, trata-se de um diálogo que, apesar de fictício, poderia ser real, travado entre um advogado, muitas vezes de fato pressionado pelos clientes, e o Juiz de um processo criminal. O resto da estória é fácil imaginar. Muito choro, queixas e sofrimento sinceros, certamente, pela ausência do ente que está preso cautelarmente pelo processo e aguardando o julgamento. Enquanto isso, do lado de fora, o Promotor de Justiça, que já produziu todas as suas provas em audiência, atravessa os corredores do Fórum com destino ao seu gabinete na Promotoria de Justiça, onde aguardará a intimação da sentença a ser proferida.

Os processos criminais, como regra geral, trazem consigo uma enorme complexidade de conflitos de interesses. No centro está, de um lado, a sociedade, em geral, de forma mais imediata e perceptível representada pelas vítimas e do outro lado encontra-se o réu, com seu legítimo direito a um julgamento justo. Nesse contexto, o Juiz desenvolve importantíssimo papel, de grandeza proporcionalmente igual a sua responsabilidade. A função judicante é sempre árdua, sem dúvida.

Dessa maneira, firme nessa linha de aproximação, questiona-se sobre a conveniência do magistrado em ter com familiares dos réus contato fora da audiência judicial, para tratarem da situação do réu no processo.

Poder-se-ia argumentar que esse contato direto é salutar para o alcance de uma decisão justa, posto que o julgador se coloca em posição mais próxima do conflito deduzido em juízo, garantindo, com isso, que perceba e se impressione com fatos e circunstâncias alheias àqueles existentes nas frias folhas de papel dos autos. Dir-se-á também que essa prática poderá conduzi-lo à almejada verdade real ou material exigida no processo penal. São alguns argumentos que, como outros, são usados e merecem o devido respeito.

Contudo, como o objetivo aqui é fomentar a discussão sobre o assunto e conduzi-la no plano das ideias, onde há o espaço para questionamento e críticas, pontua-se que as considerações ora apresentadas são para discordar dessa prática.

De largada, ressalta-se e defende-se o direito dos advogados em dirigir-se diretamente aos magistrados nas salas e gabinetes de trabalho. Assim está garantido no estatuto da advocacia, Lei n.º 8.906/1994. Contudo, nada consta nesse diploma legal que seja direito do causídico intermediar audiências fora do processo entre o julgador e seus clientes. Para falar por eles ao Juiz e defender seus interesses perante qualquer Juízo é que as partes assinam procurações aos seus advogados constituídos e contratam seus serviços.

Da mesma forma, Constituição Federal e Lei Orgânica Nacional da Magistratura nada estabelecem nesse sentido. O magistrado tem sim o dever de urbanidade. Entretanto, não se vê como, para o cumprimento desse dever, esteja o Juiz obrigado a receber parentes de réu, especialmente para tratarem de assuntos que podem ser levados ao magistrado pelos seus advogados ou declarados em audiência judicial.

Sabe-se que o objetivo do processo é a aplicação da Lei pelo Juiz. Para tanto, o julgador precisa formar o seu convencimento e assim o faz através das provas produzidas pela defesa e pelo Ministério Público, tudo dentro de regras de Direito e por meio de ritos previstos em lei. Dentre essas regras, destacam-se os princípios do contraditório e da isonomia processual.

Pelo contraditório e isonomia, Ministério Público e defesa têm o direito de se manifestarem sobre todas as provas que a parte adversa produz e, mais que isso, garante-lhes oportunidade de produzir contraprovas, tudo isso de forma que se garanta a ambas as partes condições iguais para o alcance de seus objetivos principais: provar a culpa ou a inocência do réu.

Dessa maneira, alguém ousaria discordar que o contado direto do julgador com o sofrimento de familiares dos réus interfere significativamente na percepção, ânimo, serenidade e, portanto, no convencimento do Juiz? O magistrado não é uma máquina, onde se jogam dados sobre um caso concreto e se extrai uma decisão. A figura do juiz neutro, que não deve se contaminar com fatores extra autos, é um mito e, portanto, não existe. Suas percepções pessoais, história de vida, convicções ideológicas, tudo inevitavelmente influi nas suas decisões. Natural. Daí a importância do respeito aos ritos, bem como ao contraditório e isonomia processual, além de outras regras de Direito igualmente importantes.

Todavia, tal respeito resta violado com a prática ora combatida. Fere de morte a igualdade processual e o contraditório, haja vista que o Ministério Público produz todas as suas provas e desenvolve todo o seu trabalho de convencimento dentro do processo, nos autos e em audiência, sempre sob o olhar vigilante da defesa, pronta a contraditar qualquer passo que o parquet der, como, de fato, deve ser. Contudo, essa isonomia e a oportunidade de exercer o contraditório estarão sempre violadas quando a defesa consegue intermediar o contato do julgador com parentes do réu fora das audiências judiciais, para tratarem do processo.

Parece-nos equivocado o argumento de que esse contato em gabinete não constitui produção de prova, pois tudo aquilo que influi no convencimento do Juiz deve ser assim considerado. Da mesma forma, tal prática nada tem a ver com o exercício da ampla defesa, porquanto esta deve vir sempre acompanhada do contraditório.

Como poderá o Promotor de Justiça contraditar o que se passa nessas audiências particulares? O impulso imediato seria também levar a vítima e seus parentes para um contato direto com o julgador, ou alguém duvida do sofrimento deles? Aqui também se pode alegar que o contato direto com a vítima é salutar para o alcance de uma decisão justa, posto que o julgador também se colocaria em posição mais próxima do conflito deduzido em juízo.

Todavia, não é razoável que se defenda essa ideia. Não foi para isso que juristas da envergadura de Frederico Marques, Cândido Rangel Dinamarco e Humberto Theodoro Junior, dentre outros tantos, ajudaram a desenvolver os princípios do devido processo legal, do contraditório e da isonomia processual. Além do mais, existem os ritos a serem seguidos e nenhum deles prevê atos fora do processo. Nesse contexto, o jargão jurídico “o que não está nos autos, não está no mundo” passa a ser meio verdade, pois essas audiências particulares, de fato, não constarão nos autos – antes estivessem -, no entanto, o que é grave, permanecerão na cabeça do Juiz e serão inevitavelmente lembradas no momento de decidir.

De outra face, não se deseja defender a proibição do contato do Magistrado com familiares dos réus e das vítimas. É possível usar essa aproximação como meio de prova, afinal de contas, no processo penal, são admitidas todas as provas admitidas em lei e o julgador tem liberdade na apreciação delas, garantida através do princípio jurídico do livre convencimento motivado.

Ademais, toda pessoa pode ser testemunha. Somente estão desobrigadas de depor as pessoas que devem guardar segredo em razão de função, ministério, ofício ou profissão. Portanto, nada impede que a defesa arrole os parentes do réu para prestarem suas declarações em audiência, onde poderão expor, dentro do contraditório, as consequências decorrentes do processo e da prisão do ente querido.

Sendo assim, não é demais, e até mesmo é óbvio, exigir a observância e o respeito ao art. 155, do Código de Processo Penal, segundo o qual deve o juiz criminal formar a sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial. Ressalta-se que quando é dito “em contraditório judicial” se quer dizer dentro do processo. Não é forçoso afirmar que a inobservância a essas formalidades essenciais, geradoras de ofensa ao contraditório e a isonomia processual, poderão dar azo a nulidades.

Portanto, o direito ao choro está assegurado, mas desde que seja exercido dentro das regras do jogo."

Alessandro Brandão Marques, Promotor de Justiça em Balsas-MA.

Um comentário:

Haroldo Brito disse...

Juarez, o que o colega ALESSANDRO profere em seu texto bem redigido é a mais pura verdade. Há uma preocupação enorme com a Defesa -- o que de fato é justíssimo--, mas, nenhuma, nenhuma mesmo, com o trabalho a ser desenvolvido pelo Ministério Público.
A paridade de armas, tão apregoada pela OAB, deve também ser buscada pelo Ministério Público, por intermédio de seus Órgãos de Execução.
O texto do colega é primoroso em apontar a falta de razoabilidade e proporcionalidade que se vê hoje, quando se vê juristas de relevo, preocupadíssimos com a Defesa, e relegando o Ministério Público à condição de vilão!

O equilíbrio tem de existir, tem que ser perseguido pelo Magistrado.

Hoje, nos Tribunais dos Júris, os réus sentam-se ao lado do Advogado. Deveríamos, também, colocar vítimas, se possível, ou seus parentes, ao nosso lado, quando dos julgamentos e audiências em Juízos singulares.

Devemos hoje, colegas, nos perguntar: para onde vai o Ministério Público?

Essa é a primordial indagação que devemos nos fazer, todo dia....!

HAROLDO PAIVA DE BRITO