Faz
tempo. Primeiro, uns adjetivos; depois, uns substantivos; por último,
uns verbos. Perdeu ou lhe roubaram. Sem certeza. Só restaram uns
pronomes, umas interjeições. Aos poucos, emudeceu. Calou, embora
ouvisse os gritos do mundo. As palavras eram-lhe tudo, e não as
tinha mais. Macambúzio, não sabia onde procurá-las. Por lhe
faltarem, rareava pensamentos, abortava ideias, fechava conversas.
Sentia-se vítima de algum ensaio sobre a mudez, em outras linhas de
Saramago. Resoluto, deu queixa.
– Um
roubo de palavras?, caçoou o
delegado. – Cárcere, tortura, interrogatório, processo;
lembras dessas?
Sem
atinar para o tom malicioso, demorou-se um pouco em memórias, e
assentiu, recheando as palavras com lembranças. – Usei-as num
libelo contra a ditadura... na chegada do Neiva. Esticou o olhar,
puxou um breve suspiro e falou das fortes frases de efeito, da
Deodoro apinhada de gente, do
silêncio comovido dos ouvintes, da emoção de escrever história
com o retorno dos exilados.
O delegado deixou-se fisgar pela lembrança e achou interesse em dizer que, naquela
ocasião, era estudante do Liceu, e saíra da aula para ver “os
comunistas” na praça.
Desse
ponto, a conversa encaixou-se em algumas dúzias de frases, nos
trilhos da cordialidade possível no ambiente de uma delegacia. Até
sentiu-se acolhido, embora não compreendido. Tornou a insistir que não
podia viver sem as palavras. Deprimindo-se, quase não completa a
ideia de que preferia a morte ao desespero de habitar-se em silêncio.
A
autoridade, maquinando alguma ajuda, sugeriu a leitura de
Drumond, Machado, Mia Couto, Dostoiévski, Nietzsche, Camus, Manoel
de Barros e outros. – Toma-lhes emprestadas aquelas
tantas palavras.
– Já
tentei, murmurou o homem, abrindo um livro de Guimarães Rosa,
sob os olhos do delegado, que se foram arregalando de espanto.
– Cadê
as palavras?
– Como
lhe disse: sumiram!
–
Espera aí!... Vamos com calma... Tenho por aqui um romance...
Deixa-me ver... Aqui!... Esse!... Cais da Sagração!... E, olha,...
está cheiinho de palavras.
–
Posso?
O
delegado passou-lhe o livro, mas à medida que ele o folheava, as
páginas perdiam a tinta, a cor, as letras, as palavras. Tudo ia
ficando branco no branco. Quedou-se atônito. Confuso, diante do
burburinho que o sumiço das palavras levantou na repartição, nem percebeu quando o
homem saiu. De tudo se comentava, que o tal deveria ser um
louco, um mágico, um ilusionista, um escritor sem inspiração.
Porém, na dúvida, teve dó, sob a inquietação de como poderia
alguém suportar a vida, se lhe fossem roubando as palavras? Naquele local, o tempo era nenhum para se pensar na falta que fazem palavras. Logo vieram a mulher agredida, o celular furtado, a
tentativa de assalto, a criança desaparecida, a clonagem de cartão,
e a repetição das mesmas coisas.
Feita a
noite, antes de alcançar o estacionamento, avistou pequena multidão
rente à calçada do supermercado. Um homem. Um corpo. Um morto.
Anunciou-se delegado e abaixou-se para tentar identificá-lo.
Recolheu a carteira do bolso da calça; abriu-a, e apavorou-se quando
viu que os documentos estavam todos em branco, sem palavras, sem
fotos. Rapidamente, desvirou o morto.
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