sexta-feira, 19 de abril de 2013

PEC 37, sistema acusatório e opinio delicti

Por Celso Coutinho, filho. Promotor de Justiça da Comarca de São Bento/MA


A PEC 37/2011 pretende tornar privativa das Polícias Federal e Civis dos Estados e do Distrito Federal a apuração de infrações penais, sem qualquer ressalva, impedindo, assim, o Ministério Público, dentre outros órgãos, de investigar crimes. Várias são as razões que denotam o equívoco dessa proposta. Vou me ater, aqui, às que se relacionam com as fases do sistema processual penal acusatório e com a opinio delicti. Os defensores da referida PEC convencer-me-iam do seu acerto se conseguissem explicar com razoabilidade os pontos sobre os quais passamos a ver de per se.

Sustentam os defensores da PEC 37 que a Constituição da República de 1988 adotou o sistema processual penal acusatório, separando, dessa forma, as atividades de investigação e de acusação que não poderiam, portanto, ser exercidas pelo mesmo órgão. Antes de qualquer consideração direta sobre a falta de propriedade desse argumento, é preciso lembrar que o sistema acusatório não é uma exclusividade, muito menos uma criação, brasileira. Também o temos em países aos quais creio que o Brasil tem mais a aprender do que a ensinar sobre garantias penais, além de outras. Dentre esses países, podemos citar a Itália, a Espanha e Alemanha, para ficarmos só na Europa continental, berço da doutrina do garantismo penal. Ora, por qual razão, nesses países, o Ministério Público possui poder de investigação, sem que lá isso represente uma ofensa ao sistema acusatório? A resposta não é complexa.

Cabe, antes, um parêntese. Como todos já sabem a essa altura, o direito comparado nos mostra que, no Mundo, só na Indonésia, no Quênia e em Uganda, o Ministério Público é impedido de investigar. Os três países citados como exceção não são exemplos, ao que me consta, a serem seguidos em matéria de garantismo penal, de sistemas processuais penais e de direitos e garantias fundamentais. A aprovação da PEC 37 isolará o Brasil, colocando-o ombreado à citada trindade e deslocado dos principais construtores da doutrina garantista. Isso soa com muita intensidade na discussão relativa à PEC 37, porquanto desafia compromissos assumidos pelo Brasil em tratados internacionais sobre combate à corrupção, a exemplo da Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU), da Convenção Interamericana contra a Corrupção (OEA), da Convenção da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos (OCDE) e da Acordo de Cooperação Índia, Brasil e África do Sul – IBAS.

Retornando ao tópico, o grande equívoco, ao meu ver, desse argumento pró PEC 37, relacionado ao sistema acusatório, é que, a rigor, fatia a persecução penal em três fases, quais sejam, policial, ministerial e judicial. Trata-se de um retumbante equívoco. Sabe-se que a persecução penal possui apenas duas fases. A fase administrativa e a fase judicial.

A primeira fase, desenvolvida precipuamente no âmbito administrativo, tem por objetivo elucidar uma notícia de crime, reunindo os elementos de informação necessários para a verificação da certeza material do fato criminoso noticiado e de indícios, ao menos, da autoria delitiva. Diz-se precipuamente, porquanto, em meio a essa fase, pode se valer de medidas que necessitem de uma prestação jurisdicional, como, por exemplo, a prisão temporária ou a interceptação telefônica, o que não desnatura essa fase da persecução como administrativa. Em outras palavras, a fase administrativa desenvolve-se para que, ao final, o Ministério Público forme a opinio delicti, nos crimes de ação penal pública, ou para que um cidadão, particularmente, o faça, nos crimes de ação penal privada. Formada a opinio delicti e, sendo esta positiva quanto ao fato e excludente quanto aos elementos negativos do tipo e da culpabilidade, a fase judicial é, então, inaugurada com o recebimento pelo juiz da denúncia formulada pelo Ministério Público ou, em sendo o caso, da queixa-crime.

O erro está, exatamente, em querer distinguir duas fases administrativas para, em seguida, atribuir, privativamente, à Polícia a condução de uma delas. Não está inscrito na teoria do sistema processual penal acusatório que a persecução penal comporte uma fase administrativa policial, uma fase administrativa ministerial e uma fase judicial. O sistema acusatório não faz essa distinção tríplice, distinguindo, sim, uma fase administrativa e uma fase judicial, em que as conduções de uma e de outra não se enfeixam em um mesmo órgão, pois o que esse sistema processual penal busca preservar é a separação entre acusação e julgamento. Nada mais correto. O ponto fulcral do sistema acusatório é impedir aquele que irá julgar de participar da produção de provas e vice-versa. Todavia, até isso é relativo no Brasil, ante as disposições normativas contidas nos arts. 156, 196 e 616 do Código de Processo Penal, que permitem ao próprio juiz produzir provas.

No mesmo sentido dessa relativização, nem mesmo a formação da opinio delicti é privativa do Ministério Público, podendo ser exercida pelo particular nos crimes de ação penal privada ou, mesmo, nos crimes de ação penal pública, quando o Ministério Publico deixa transcorrer in albis o prazo que a lei lhe confere.

Somente a fase judicial pode ser privativa de um órgão, o que se justifica, em suma, por esse órgão se tratar de um Poder constituído, diferentemente da Polícia e do Ministério Público. Essa justificativa envolve razões ainda muito mais complexas que nos remeteria à conhecida teoria da tripartição de poderes de Montesquieu, que não é objeto do estudo que ora se apresenta. Pode-se, contudo, afirmar que, nem mesmo essa tripartição de poderes - que na verdade é de funções – é absoluta, porquanto se sabe que os três Poderes constituídos encarregam-se, por excelência, de uma função que lhes é típica, mas, a rigor, todos administram, legislam e julgam, dentro dos bordos constitucionais e legais de cada um.

O que não pode, definitivamente, é a Polícia e o Ministério Público participarem da condução da fase judicial. Porém, na fase administrativa, essas duas instituições, que têm que ser parceiras, possuem uma relação mútua de complementaridade. Não apenas a Polícia e o Ministério Público, mas, também, outros órgãos da Administração Pública, a exemplo dos Tribunais de Contas, das Controladorias Gerais, das Receitas Municipal, Estadual e Federal, do Banco Central, do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), da Polícia Rodoviária Federal, das Polícias Militares, das Corregedorias (do próprio Poder Judiciário, inclusive) etc.

Antes de ser jurídica, trata-se de uma questão lógica. No sistema processual penal acusatório cabe à acusação o ônus da prova. Ora, se cabe ao Ministério Público o ônus da prova, como querer-se impedir o Órgão Ministerial de obter diretamente as provas, deixando-o condicionado ao trabalho da Polícia Judiciária? No Brasil, embora as Polícias Federal e Civis dos Estados e do Distrito Federal sejam chamadas de Polícia Judiciária, o trabalho por elas desenvolvido tem por norte o Ministério Público, por ser este o titular da ação penal e, portanto, o detentor da opinio delict. Assim sendo, não pode, lógica e juridicamente, o Ministério Público ser aparteado da atividade investigativa de crimes e colocado numa posição de mera desembocadura dos trabalhos da Polícia. Nem se tente argumentar que a atuação do Ministério Público na atividade investigativa não será de simples espectador, pois poderá requisitar diligências à Policia. Requisitar diligências, até quando? Exatamente aqui, instala-se outro ponto que entendo carecedor de explicação razoável por parte dos prosélitos da PEC 37, relativo à questão da opinio delicti, já citada antes. Vejamos.

No sistema processual penal acusatório, a opinio delicti pertence ao titular da ação penal, i. e., àquele que irá sustentar a acusação perante o juízo competente. O titular da ação penal é, em regra, o Ministério Público, podendo, excepcionalmente, ser a própria vítima ou quem legalmente a represente. Aqui, é fundamental lembrar que o Ministério Público não tem compromisso com a acusação, somente o fazendo se a opinio delicti for positiva quanto ao fato e excludente quanto às causas elidentes da ilicitude ou da culpabilidade.

Em a atividade investigativa se tornando privativa da Polícia Judiciária, a opinio delicti desloca-se, em última análise, para essa instituição. É que sem condições de avançar diretamente com as investigações, tanto o Ministério Público quanto a vítima, conforme o caso, serão obrigados, mais cedo ou mais tarde, a se contentarem com a conclusão da investigação policial. Para melhor compreensão, tomemos um caso rumoroso extraído de uma miríade de exemplos. O assassinato do ex Prefeito de Santo André/SP, Celso Daniel.

A investigação da Polícia Civil de São Paulo concluiu que o crime que vitimou o ex Prefeito Celso Daniel não tinha conotação política, tratando-se de um sequestro malsucedido. O Ministério Público não concordou com essa conclusão da Polícia Civil, consubstanciada em seu inquérito policial, e insistiu para que a própria Polícia avançasse nas investigações, apontando os caminhos que deveriam ser ainda esquadrinhados. Com a insistência dos promotores de justiça, a Polícia prosseguiu nas investigações, mas acabou dando o caso por encerrado com a predita conclusão.

Em sendo, naquele tempo, vigente o texto normativo da PEC 37, ao Ministério Público restaria se resignar com a conclusão da Polícia Civil. Contudo, felizmente a PEC 37 nem sequer existia e, por isso, os promotores de justiça puderam investigar diretamente aquele crime, conseguindo elucidá-lo, com a ajuda da família da vítima inclusive. Com a investigação direta do Ministério Público, ficou constatado que o crime de homicídio que vitimou Celso Daniel estava ligado a um mega esquema de corrupção na Prefeitura Municipal de Santo André/SP, com alguns dos autores do assassinato até já condenados pela Justiça.

Se a conclusão da Polícia uma hora tiver que se tornar a definitiva, estando o Ministério Público impedido de investigar diretamente, pergunta-se: quem de fato passa a deter a opinio delicti? A mesma lógica serve para a ação penal privada e a ação penal privada subsidiária da pública. As vítimas ou os seus representantes legais estarão impedidos de buscar motu proprio e diretamente a elucidação dos crimes que lhes sejam infligidos. Isso alcança os advogados que representam as vítimas ou os seus representantes legais.

Com o escopo de rebater esse deslocamento da opinio delicti para um órgão não detentor da titularidade da ação penal, não serve o argumento de que isso foi corrigido pela redação da emenda substitutiva apresentada pelo relator da PEC 37, que acrescentou ser “facultado ao Ministério Público complementar provas obtidas por órgãos não policiais, com atribuições investigatórias definidas em lei e derivadas desta Constituição, bem como na hipótese de infrações penais conexas apuradas em inquérito civil, em qualquer dos casos, desde que esteja provada a autoria”.

Perceba-se que a faculdade de complementação das provas restringe-se àquelas obtidas por órgãos não policiais e em inquéritos civis, ainda assim condicionando a atuação complementar do Ministério Público nos casos em que a autoria já esteja provada. Deu com uma mão e tirou com a outra.

Não se pode negar que a redação original da PEC 37 é mais coerente que a alvitrada pelo seu relator. Confere à Polícia Judiciária o monopólio da investigação de crimes e pronto. Já a emenda substitutiva referir-se a “provas obtidas por órgãos não policiais” é, na verdade, um oximoro. O pilar central de sustentação da PEC 37 está na premissa de que a Constituição da República de 1988 adotou o sistema processual penal acusatório, definindo as Polícias Federal e Civis dos Estados e do Distrito Federal como as responsáveis pela investigação de crimes. Portanto, a PEC somente explicitaria o que já está na Constituição. Ora, se a referida PEC somente esclarece o que já está no texto constitucional sobre o exercício privativo da atividade investigativa de infrações penais pela Polícia Judiciária, como se pensar em “provas obtidas por órgãos não policias” que não estejam inquinadas pela ilicitude, portanto nulas?

O resultado disso, na prática, é que somente as Polícias Federal e Civil dos Estados e do Distrito Federal poderão investigar, ou seja, colher provas, à exceção, talvez, das Comissões Parlamentares de Inquérito, o que ainda pode ser discutido em outra oportunidade. Isto pois, como se disse antes, são os próprios defensores da PEC 37 a verberarem que só buscam explicitar o que já está na Constituição, i. e., a investigação de crimes cabe somente à Polícia Judiciária. Se esse argumento exclui o poder de investigação do Ministério Público, também exclui o de qualquer outro órgão que não seja a referida Polícia. Não só de órgãos públicos, mas também privados, como a imprensa, as empresas de auditoria e os escritórios de advocacia, por exemplo. Como ficarão as provas que inocentem ou, ao menos, mitiguem a situação penal do réu, obtidas a partir de investigação entabulada pelo próprio advogado? Serão nulas, afinal de contas, como quer a PEC 37, será privativo da Polícia Judiciária investigar crimes. Sem contar que advogados não atuam apenas na defesa de réus, mas, também, na defesa da vítima ou de seus representantes legais.

Como forma de ilustrar o que se diz a respeito da opinio delicti, voltando ao caso Celso Daniel, por sua notoriedade, o Ministério Público estaria impedido de seguir diretamente nas investigações nos termos da PEC 37 e de seu substitutivo, porquanto a peça informativa que lhe chegou às mãos trazia provas obtidas por órgão policial e, também, porque não estavam provadas, até aquele momento, as autorias delitivas. Em resumo, deveria prevalecer a conclusão da Polícia Civil de São Paulo que, portanto, de fato seria a formadora da opinio delicti.

Isso, sim, é, flagrantemente, inconstitucional, padecendo de completa incompatibilidade com o sistema processual penal acusatório.

Caminhando para a conclusão, cumpre deixar claro que o Ministério Público brasileiro reconhece o importante papel desempenhado pela Polícia em nosso país e não deseja ocupar o espaço que lhe cabe. Apenas, não se faz compreensível que a atividade investigativa seja vedada ao Ministério Público em situações onde a Polícia, por qualquer razão, não tenha desenvolvido o seu trabalho. É injustificável que, na condução de um inquérito civil para investigar ato de improbidade administrativa, que, em quase a totalidade das vezes, corresponde a um ilícito penal, o Ministério Público seja obrigado a paralisar a sua investigação, encaminhar os autos respectivos à Polícia Judiciária e ficar adstrito à conclusão do trabalho policial. Foge, completamente, à razoabilidade que o Órgão sobre o qual recai o ônus da prova esteja impedido de obtê-las diretamente. É inadmissível que não se compreenda que a marcha da história caminha para o compartilhamento de atribuições, o que decorre do caráter cada vez mais intrincado que assumem as relações sociais, em seus aspectos tanto públicos, quanto privados (v. a Lei de Arbitragem e sua revisão em andamento com o apoio do Poder Judiciário, a fim de incrementar a mediação de conflitos civis e, assim, reduzir as demandas que chegam àquele Poder).

Por fim, clamo aos nobres e respeitáveis integrantes da Polícia Judiciária que compreendam que a força ora despendida para aprovar a PEC 37/2011 deveria estar sendo direcionada para ações que, efetivamente, reforçariam a instituição policial. A aprovação da PEC 37/2011 em nada contribuirá para o fortalecimento da Polícia Judiciária brasileira. Os esforços ora consumidos deveriam ser dirigidos no sentido de dotar a Polícia das estruturas humana e material de que necessita para o exercício de suas atribuições conforme as expectativas dos cidadãos e das cidadãs de bem desse país. Não só. A luta que se mostra inadiável e urgente é pela independência das Polícias Federal e Civis em relação aos respectivos Poderes Executivos.