quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Cura

Fugiu pela porta da frente. Ele e um outro que voltou sem ter para onde ir. Foi chão afora, com a polícia na pegada, até que uma bólide de chumbo atravessou-lhe a articulação do cotovelo. Não era mesmo o dia da caça. No mato, arrepiou-se em dores e foi chacoalhando na viatura até Presidente Dutra, onde os procedimentos médicos renderam-lhe a certeza de que não tornaria a abraçar coisa alheia como sua, e que, também, não falaria mais. Deixou a sala de cirurgia sem voz. O lacônico emudecera. No reencontro com os companheiros de cela, silêncio. Para explicar o que lhe sucedera, tecia gestos desconexos, alinhavados por um arreliento hum-hum-hum. Visita ou colega de infortúnio, delegado ou escrivão, dia após dia, ninguém arrancava-lhe um vocábulo. “Fingimento!” ― alertou o comissário. “É medo de ser obrigado a contar quem ajudou na fuga; esse é malaco véio”. Correram dias, semanas, meses, e a mudez ganhava corpo e preocupações mais sérias. Poderia ter sido provocada por lesão nas cordas vocais durante o entubamento, ou por um trauma psicológico quando divisou a morte disparada ao seu encontro. Solícito, o médico apareceu na delegacia. Após vinte minutos de anamnese reservada, confidenciou a fraude: “Falará depois da próxima consulta.” Dito e feito. Agora, parece um papagaio, descontando o tempo calado. Dizem que até fala mais. “Nenhum” ― explicou o doutor. “Não tomou nenhum remédio. Quando esteve no hospital, eu apenas disse que mandaria aplicar dois, na manhã seguinte; um comprimido que o deixaria tonto por meia hora, e uma injeção que provocaria ardência progressiva na veia.” A cura não esperou tanto. Já chegou na delegacia falando.

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