Hoje (14/08) o STF aprovou a Súmula Vinculante que “regulamenta” o uso de algemas. Eis seu teor: “Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.
Eu já havia criticado aqui a falta de sintonia dos ministros do Supremo com a realidade. Mas o teor da súmula demonstra falta de sintonia da corte com a letra da Constituição, diversos os vícios que inquinam o ato.
Para começar, não existiam “reiteradas decisões sobre matéria constitucional” envolvendo limitação do uso de algemas, de modo que se violou o caput do art. 103-A da Constituição. O que existia era o julgamento de um habeas corpus em que se discutia a nulidade da sessão de julgamento do Júri em razão de ter permanecido o réu algemado. Assim, não havia correlação entre a questão decidida e o teor da súmula, que extrapolou os limites da questão levada ao conhecimento do plenário.
Afora isso, o § 1º do art. 103-A estabelece que a súmula terá por objeto o “objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas”. Qual norma determinada foi interpretada pelo STF ao editar a Súmula nº 11? Nenhuma. Consta, oficialmente, que seria a regra do art. 474, § 3º, do CPP, com a redação dada pela Lei 11.698/2008, que passou a vigorar anteontem e nem existia quando dos fatos que ensejaram o HC.
Continua o § 1º do art. 103-A da CF dizendo que somente caberá súmula vinculante quando existir “controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública”. Existia essa controvérsia no caso? Evidentemente que não. E mais, dessa controvérsia deve advir “grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica”. O tema não gera insegurança jurídica e muito menos relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. E aí temos outro problema: “questão idêntica” seria acerca da validade do julgamento pelo Júri com réu algemado, e não o tema abstrato de “limites ao uso de algemas”.
O STF poderia ter editado súmula dizendo que é nulo o julgamento realizado pelo tribunal do júri com réu algemado injustificadamente. Mas não poderia ter regulado toda a matéria de forma genérica como fez.
Em síntese, nenhum dos pressupostos constitucionais relativos à edição de súmula vinculante estava presente, daí sua patente inconstitucionalidade formal.
Em suma, o STF inovou originariamente no ordenamento jurídico, ou seja, legislou mesmo. E isso fica mais evidente quando se observa a exigência feita pelos ministros de que a ordem de uso das algemas venha por escrito. No ordenamento jurídico há dois dispositivos que mencionam o uso de algemas: o art. 474, § 3º, do CPP e o art. 234, § 1º, do CPPM. Nenhum desses dois dispositivos exige ordem escrita da autoridade para determinar o uso de algemas. O STF, portanto, ao “interpretar” a norma, estabeleceu condições que nem a própria lei fez. Extrapolou os limites dela. É situação semelhante ao que ocorre quando o Presidente da República regulamenta a lei através de decreto: se o decreto extrapola os limites da lei, fazendo exigências que ela não faz, ele é inconstitucional.
A pior parte fica para o final. A súmula estabelece penas para o caso de sua não observância: responsabilidade civil, disciplinar e penal do agente ou autoridade e nulidade da prisão ou do ato processual.
Comecemos pela nulidade, que é mais branda. As nulidades são previstas textualmente no CPP, mas admite-se sua decretação em outras hipóteses não incluídas no rol legal. Mas o Código é expresso em dizer e a doutrina não cansa de repetir: não há nulidade sem prejuízo. Imagine-se que o réu seja interrogado com algemas, sem ordem por escrito. Qual o prejuízo do ato? Nenhum. Hipótese diversa é a do julgamento pelo Júri, porque os jurados, leigos que são, podem se influenciar pela visão do réu algemado. Já o Juiz togado, que é técnico, não se influenciará por isso, até porque, muito provavelmente, se o réu está preso foi por ordem do próprio juiz. Se ninguém questiona a imparcialidade do Juiz que decreta a prisão preventiva do acusado, muito menos a questionará quando o juiz interrogá-lo de algemas.
Portanto, o uso de algemas em atos processuais, por si só, não importará em nulidade, e a súmula vinculante do STF não tem o condão de revogar o CPP na parte em que determina que somente ocorrerá nulidade se dela advir prejuízo ao direito de defesa do réu.
Resta analisar a pior parte: responsabilidades. Quanto à responsabilidade civil, basta lembrar que as obrigações têm três fontes: lei, vontade e ilícito. Súmula vinculante não cria obrigação, apenas interpreta a lei. Poder-se-ia dizer que a responsabilidade do agente, aqui, decorreria do ilícito: usar algemas em desacordo com a lei. Mas, em primeiro lugar, os dois dispositivos legais que regulam a matéria não prevêem responsabilização civil do agente que a inobservar. Fora isso, onde estaria o dano aí? Qual o abalo moral ao réu que já está preso e foi mantido com algemas durante audiência? Salvo raras exceções, me parece não existir, não se tratando, evidentemente, de dano moral in re ipsa.
Quanto à responsabilidade disciplinar, novamente descabida a súmula, porque as hipóteses de responsabilização disciplinar devem advir do estatuto legal que discipline a carreira jurídica. O delegado não pode ser punido por fato não previsto na lei que o regula, assim como o magistrado não pode ser punido por situação não prevista na LOMAN, ainda que súmula vinculante o faça.
E quanto à responsabilidade penal, temos o mais absurdo. Os ministros esqueceram que em direito penal ainda existe um princípio denominado “legalidade”. Súmula não define crimes e nem penas. Mas, podem dizer os defensores do ato, a súmula apenas interpreta a subsunção entre a conduta de manter as algemas e o tipo previsto na lei de abuso de autoridade. Ocorre que essa subsunção é feita casuisticamente, de acordo com as circunstâncias de cada situação e a prova dos autos. Súmula não pode estabelecer, de forma genérica, o que é ou não crime. Isso somente cabe à lei.
Em suma, o STF usurpou o papel do legislador, sumulou entendimento que extrapolava os limites da questão que lhe foi trazida, agindo de ofício.
Isso demonstra o lado perverso do instituto da súmula vinculante. Concebida como um instrumento de otimização da prestação jurisdicional e uniformização de entendimentos no Judiciário, se mal utilizada (como no caso), pode gerar efeitos catastróficos. Basta lembrar que somente a lei pode inovar no ordenamento jurídico, mas para isso ela é proposta por parlamentar, passa por diversas comissões temáticas, é aprovada em duas casas legislativas, submetida à sanção, onde o Presidente da República ouve ministros de diversas área relacionadas e só depois decide. E, após isso, essa lei pode ser questionada concretamente perante o juiz de primeiro grau, e, em abstrato, perante o STF.
No caso da súmula vinculante, onze ministros resolveram, numa canetada, regular abstratamente algo que nem a lei regula, editaram um ato que não pode ser questionado nas instâncias inferiores do judiciário, não foi submetido a discussão no legislativo e à análise do executivo e que só pode ser alterado a partir da iniciativa de uns poucos legitimados.
Talvez o Constituinte reformador de 2004 não tenha se atentado para esse tipo de situação ao deixar de prever mecanismos de controle do instituto das súmulas vinculantes. Ou tenha acreditado que nossas instituições tivessem atingido um grau de maturidade que, agora se vê, está longe de ser alcançado.
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