Partirá, com certeza, mas não demonstra pressa. As dores, os pigarros e os queixumes miúdos, parece, ainda, não lhe fazerem companhia. Ao contrário, precede-a o riso fácil, a palavra animada, o bom humor, tão cheia de apetites, como se a eternidade pudesse ser tapeada. Gente ao tempo dos bolcheviques; na certidão o ano é 1915. Comparece para ajudar a vencer algumas dúvidas sobre datas e nomes da família. A boa memória põe tudo em ordem, e empolga-se de satisfação ao responder sobre o marido: “Está morando debaixo do chão!”. Ri que ri, agregando espanto ao derredor: “Seu Doutor, preguiça não se cobiça!”. E, com ar mais severo, justifica seu suspiro de vingança sem remorso, num arremate: “Era preguiçoso; um grande preguiçoso, isso era!”. Sem deixar órfã a curiosidade, relembra que o de cujus a abandonara muito nova, com uma penca de filhos, porque ele não queria mais botar roça. Para criá-los, teve de se haver como o homem e a mulher da casa, quebrando muito coco pra tirar azeite. Por esse orgulho de sobreviver aos tempos dilatados da agonia, lentamente, exibe as mãos: “Com essas, não perdi nenhum.”
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