quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Um juiz

Era assim que funcionava. Uma boa lista prévia de fregueses garantia o suplício do boi. Sem esse boletim, a carne poderia ficar empatada sobre o cepo, para as moscas fecundarem prejuízos difíceis de suportar, naqueles anos de inflação sem cabresto. Faltava gado, minguavam consumidores e, no velho mercado, os magarefes driblavam a concorrência, se ajustando num rodízio para garantir o pão necessário. Chico da Engrácia iria matar um garrote na madrugada de quinta. Ciente, sua excelência apalavrou uns tantos quilos, pois era metade do preço da capital. O filé-mignon seria um mimo para aplacar certa ira da patroa, envenenada com a quase fama de suas peripécias sexuais na comarca. Contava com isso. O meirinho rasgou o que ainda era breu da noite em sua bicicleta até o matadouro, para conferir a pesada. Em vão. A conversa já se espalhara na espera do mercado: que Chico vendera o boi para um marchante de Colinas. Negócio bom danado. Boi em pé, dinheiro no ato. Os clientes sobreviviam a essas eventualidades. Sem gosto, mas sem aporrinhação, tentavam uma posta na lista de outro boi; pela sobra. Aí, sua excelência não quis entender. Sujando a boca com uma dúzia de adjetivos negativos que envolviam a mãe do magarefe, vaticinou-lhe a penetração forçada no orifício distal do intestino e asseverou-lhe o brotamento de protuberâncias córneas na fronte, imputando conduta desonrosa à esposa. No mesmo tom, reclamou a imediata presença do sargento Santana, que se fez a postos, com a cara ainda remelada e a roupa dormida, para dar cumprimento à sentença: que fosse à casa recolher o dito cujo. Feito, sua excelência aboletou-se na picape e levantou poeira das ruas de Mirador. Enquanto a manhã acordava, a fila do mercado subia curiosa até a delegacia; a cidade vomitava a sanha pelas esquinas. Dona Engrácia, à porta do xadrez, quase ao meio-dia, ainda pranto, arrumava a marmita do filho, com os olhos cerrados de indignação.

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