segunda-feira, 22 de março de 2010

Premissas

De Francisco Soares Reis Júnior, Juiz de Direito da Comarca de Humberto de Campos, publicado originalmente no sítio da Associação dos Magistrados (AMMA), hoje (22/03), às 11:47:

"Chegou a vez de dar meu testemunho sobre a vida de um magistrado em uma comarca do interior do Maranhão.

Ingressei na magistratura em dezembro de 2003. Casei em janeiro de 2007 e me tornei pai em agosto de 2007.

Após os primeiros meses do nascimento de nosso filho, decidimos eu e minha esposa que o ideal seria a permanência da família unida todos os dias da semana.

Solução mais óbvia: morarmos permanentemente na Comarca.

A cidade era Humberto de Campos. Após alguns dias de procura, verifiquei que não havia qualquer imóvel disponível para locação em condições mínimas de higiene e salubridade.

Única saída: comprar uma casa e providenciar sua reforma.

Preço do imóvel: R$ 28.000,00 (valor pago em oito prestações iguais de R$2.500,00 e uma entrada de R$ 8.000,00). Com a reforma, foram mais R$ 40.000,00, fruto de reservas, já que se tratava de meu primeiro imóvel, e de um recebimento de cerca de R$ 18.000,00 referente ao pagamento da Parcela Autônoma de Equivalência, em março de 2009.

Primeira polêmica e desconforto: A decisão foi tomada logo após as eleições municipais de 2008, de modo que surgiu uma série de insinuações na cidade de que eu estava recebendo subsídios do prefeito municipal para a reforma do imóvel. Coisas do tipo “Bom mesmo é ser juiz nos Lençois Maranhenses, já que recebe carro e casa do prefeito”.

Houve, inclusive, divulgação dessa injúria, por meio de um pasquim apócrifo, em todas as ruas e comércios da cidade.

A revolta foi imediata. Não houve como não ficar desgostoso e arrependido da decisão recém tomada.

No entanto, já havia feito o investimento e não via melhor solução para permanecer próximo da minha esposa e do meu filho, o qual tinha, na época, 01 ano e 05 meses de vida.

Então, engoli o orgulho e a chateação e fui morar com toda a trupe na comarca.

A idade tenra do meu filho e o fato de minha esposa ter se graduado em Arquitetura há menos de 06 meses possibilitaram que ambos pudessem se desprender dos laços existentes em São Luís em prol de nossa família unida no interior do Estado.

Não foram poucos os conselhos e alertas de amigos e de familiares sobre a aventura despropositada que estávamos tomando. Afinal, segundo a visão preconceituosa deles, “nenhum magistrado residia no interior”.

Sabia que era mentira tal opinião, fruto do senso comum de boa parte da sociedade. Mas também já imaginava que seriam dias de muitas mudanças!

Assim, fomos de malas, bagagens e demais bichos de estimação. Era abril de 2009.

No início, tudo foram flores. Euforia pela casa nova. Brincadeiras constantes com nosso filhinho. E até fizemos amigos na vizinhança, a maioria bem humilde, porém zelosos e divertidos.

Até o primeiro incidente!

Como ficávamos também os finais de semana em Humberto de Campos, passamos a convidar alguns amigos novos para almoços e para passar a tarde no quintal de nossa residência. (É incrível nosso poder de se adaptar aos novos ambientes e a procurar a felicidade seja da forma como ela se apresentar).

Pois então, como dizia, até o primeiro incidente, ou melhor, trauma. Explico.

Durante a reforma da casa, percebemos que o eletricista contratado, que se apresentou como Moisés, era um sujeito bem competente e mais educado que os demais trabalhadores da obra.

Assim, naturalmente, mantivemos uma amizade preliminar, com o qual mantinha conversas amistosas e que freqüentou minha residência algumas vezes.

Até que um dia, na sala de audiência, o Delegado de Polícia de Humberto de Campos me telefonou e informou que estava com um mandado de prisão a ser cumprido contra dois suspeitos de terem assassinado um policial militar no interior do Pará e estavam se escondendo em nossa cidade.

Acrescentou que havia alguns policiais civis paraenses que tinham se deslocado para recambiar os presos até a comarca onde se consumou o delito.

Requisitei que me apresentassem a decisão e o mandado judicial e, após a prisão dos suspeitos, que fossem submetidos a exame de corpo de delito e conduzidos perante este magistrado.

Para minha enorme surpresa e arrepio: eram Moisés e sua companheira as pessoas procuradas. Ainda perguntei a ele se era verdade aquela acusação e ele nem tentou negar.

Havia inúmeras fotografias do policial morto. E, na minha cabeça, só veio a imagem de que, no início da manhã daquele mesmo dia, ele havia ido até minha casa, a meu pedido, consertar o chuveiro elétrico do quarto do meu filho, com o qual ainda brincou por alguns instantes.

Na volta para casa, tive a maior cautela de contar a história para minha esposa e pedi que não a reprisasse para a babá nem para a empregada.

O susto daquele momento virou trauma depois. Não fizemos mais qualquer almoço. Não saíamos mais de casa, a não ser para o Fórum, para o pequeno comércio do “Ribinha” e para levar meu filho Otávio à sua escola-creche, situada no bairro da Bacabeira.

Ah, por falar em escola. Não existem escolas particulares em Humberto de Campos. Não que me informaram. Por isso, decidimos pedir para a Diretora do Jardim de Infância “Cebolinha” para que pudéssemos matricular nosso filho, mesmo após o período adequado.

A verdade é que a escola não tinha recursos pedagógicos suficientes. Era mais um lugar para as crianças passarem a manhã e, essencialmente, terem a principal refeição do dia.

As professoras não eram preparadas e nem motivadas. Mantivemos nosso filho lá unicamente pelo aspecto da sociabilidade com outras crianças. Além de que, por ser filho do Juiz da Cidade, ele chamava a atenção de todos, o que prejudicava seu natural entrosamento e aprendizado.

Na realidade, ele foi poucas vezes à escola. Passava o dia em casa assistindo televisão e brincando com brinquedos educativos que trazíamos todas as semanas de São Luís.

Sim, voltamos a ficar no trânsito rodoviário Humberto de Campos/São Luís/Humberto de Campos. Íamos para São Luís depois do almoço de sexta-feira e voltávamos após o almoço de domingo.

Quase ia esquecendo. Por duas vezes, nosso filho pegou ameba e teve crises intestinais. Certo dia, tivemos que vir às pressas para São Luís, pois lá, mesmo com médico pediatra, não há como realizar exames e prescrever simples tratamentos confiáveis. Nessa mesma ocasião, quando fomos comprar o medicamento ministrado, as farmácias já estavam fechadas e, mesmo com a insistência, não havia o remédio no estoque.

No entanto, fomos nos acostumando com as limitações da cidade e nos antecipando a eventuais necessidades.

Porém, a rotina foi tomando conta de nossos dias. Como ocupação, assistíamos a muitos canais na televisão por assinatura, corríamos nos finais de tarde na entrada da cidade, em plena rodovia, e estudávamos boa parte do tempo.

Ocorre que, com o passar dos meses, minha esposa e filho foram ficando entediados daquela situação. Ela, por não encontrar emprego, já que não havia oportunidades na iniciativa privada nem o Município realizou qualquer concurso público para contratação de servidores. E pedir emprego para o Prefeito Municipal era fora de cogitação. E ele, por ficar preso em casa a maior parte do dia, além de que já achava muito mais animado os dias em que passávamos em São Luís/Ma.

Assim, em dezembro de 2009, resolvi dar um basta.

Aquela situação estava se tornando insustentável, inclusive para o equilíbrio do casamento.

E, unilateralmente, decidi que minha esposa e meu filho deveriam retornar para a capital do Estado.

Hoje, ela está trabalhando como profissional liberal em inúmeros projetos de ambientação e arquitetura. Já ele estuda na Escola Crescimento e adora a sua “tia Cláudia”.

A família vai ficar separada fisicamente durante os dias da semana. Mas unidos no amor. Não encontro outra solução.

Hoje, eu compreendo melhor o conceito de “celibato”. Nós, magistrados e promotores de justiça do interior desse Estado, optamos por essa condição.

Só que ocupamos funções de Estado por mérito e esforços próprios. E não podemos ser condenados por desejar as melhores condições de vida para nossos familiares.

Ademais, tenho sérias dúvidas sobre as vantagens de um magistrado residir na comarca. Ele estará privado de inúmeras atividades, limitado em suas amizades e exposto a comentários maledicentes com mais freqüência.

Por outro lado, tenho certeza de que, se a infra-estrutura de nossas cidades do interior fosse adequada, a maioria dos juízes levaria suas famílias e lá residiriam com tranqüilidade. Até porque ninguém em sã consciência, penso eu, tem prazer em trafegar semanalmente nessas rodovias de nosso Estado.

Hoje falo, após ter vivido a experiência, por dever de fazer um contraponto a opiniões de pessoas que nos julgam gratuita e maldosamente.

E, aos que organizam e escrevem os blogs que tratam constantemente de assuntos sobre o Poder Judiciário do Maranhão, concito que convide os magistrados para contribuírem com o debate e para que a população nos conheça melhor, quando terão a oportunidade de se surpreender com homens e mulheres porta-vozes do bom-senso, das transformações sociais e de uma visão crítica do direito."

Um comentário:

José Márcio disse...

Conheço Júnior há muito tempo e tive a oportunidade de comungar com ele os primeiros traumas da carreira no interior, quando trabalhamos juntos em Cururupu, em 2004.
Tive o prazer de reencontrá-lo em Humberto de Campos quando, como Promotor de Barreirinhas, tive que por lá responder por algumas vezes. Sei da sinceridade dele quanto à residência na comarca porque já fizemos muitas audiências juntos nas segundas e sextas-feiras e sei da sua tentativa vã de manter-se unido à família durante toda a semana porque fui convidado a almoçar em sua casa em HC por várias vezes.
Digo que tudo isso que ele relatou é um viés atormentador da carreira.
Há cada dia vejo a minha juventude passar e perco a infância de minhas filhas porque cheguei à mesma conclusão dele: deixar a família na capital.
É caro amigo... que Deus nos dê forças para cumprirmos a nossa missão, que nos ajude a disfarçar a solidão e que seja misericordioso com a dor da distância dos que nos são mais caros.
Um grande abraço,
José Márcio.