sexta-feira, 2 de abril de 2010

Equação


Há crimes e criminosos. Dito de outra forma, infração e infratores. Há muito mais que isso, as circunstâncias que criam os (atores) autores e os encorajam a encontrarem ou cometerem seus (atos) fatos. Ao lado de toda maleficência existe outra janela, de um universo paralelo, que não vingou; cedeu lugar. Algumas vezes, estamos mais próximos dos criminosos que dos seus atos.

Tinha menos de quatorze, quando começou a frequentar autuações, grades e audiências. Vivia com o pai, um lavrador de estatura miúda e voz sumida, sem maiores conflitos que não os alcançados pelo hálito da pobreza. Sua ficha de pequenas faltas repetidas o colocava no cardápio dos conceitos e preconceitos, até para substituir “o bicho” nas admoestações maternais: “Não vai pro rio, senão o Pimenta te pega!”. E algumas se pelavam de medo.

As medidas socioeducativas decididas no fórum não surtiam efeito. Talvez porque fossem desmedidas, anti-sociais ou deseducativas, alcançando, no fundo, o modo como a sociedade tenta expiar seus pecados, transferindo ao judiciário o poder de interferir na vida, como se tudo fosse uma questão de regras.

Nem quando o médico diagnosticou alguma coisa esquisita por dentro da frágil máquina biopsicológica, o garoto não recebeu nenhuma atenção especial, ao contrário, sua internação correcional foi prolongada, e lhe deu a oportunidade de matar um colega no internato. Segundo diria, “era ele ou eu.” Naquele momento, acabara de completar dezoito anos, e fora promovido para o estatuto penal.

De 2006 para cá, foi solto por excesso de prazo; foi preso na pronúncia. Fugiu; foi preso. Fugiu; voltou. Fugiu, de novo; que um pássaro não se entedia com a liberdade.

Quando alguém avisou que estava com a trupe do circo que estreava na cidade, a polícia foi acionada e o recolheu, sem vexames. Dias depois, nos avistamos. “Arranjei trabalho no circo, doutor. Não escondi quem eu era. Abri o jogo com o dono e ele me aceitou, numa boa. Já estive com ele em Colinas, São Domingos e Fortuna. O ganho é pouco, mas eu gosto muito do que faço. Eu sabia que, voltando para cá, poderia ser preso. Mas, eu não podia deixar de fazer meu trabalho. Eu gosto muito, sabe?

Enquanto conversávamos, mostrou-se desolado com a demora no julgamento do seu processo que corre na capital. Ao final, alegando curiosidade, indaguei: “Francisco, e qual era o teu trabalho?”. Então, abriu um sorriso, como se fosse o guardião da chave do horizonte, e movendo os lábios com a fraqueza dos felizes, revelou, com pontas de vaidade: “Eu fazia o palhaço; o palhaço Pimenta! Esse é o meu sonho, desde criança.

Naquela noite, apertei os olhos algumas vezes, antes de dormir. Um jovem morto; outro preso; imaginando errada a equação em que há mais grades do que circos e palhaços.

Um comentário:

Carla Tatiana disse...

Linda a crônica...
Sobre essas circunstâncias sim, é fundamental se pensar, enfrentar e se manifestar, situação que inclusive não é mais tão circunstancial, parece ser uma constante, cotidiano triste este...
Parabéns pelo belo texto.
Carla