quarta-feira, 7 de abril de 2010

Uma noite

A poeira levantada na traseira da picape se entranhava nas narinas umedecidas pela brisa orvalhada da madrugada que insistia em cobrir de névoas a velha estrada de piçarra. Antes que o calor iniciasse a tirania do seu ofício estariam na porta do fórum e restaria tempo para se revigorar com uma cuia do mingau de milho de Dona Cota. Embora uma testemunha desistisse da viagem, que enfebrecera com suspeita de sezão, estava outra vez satisfeito com a possibilidade de soprarem nos ouvidos da justiça. Passadas as últimas casas, fechou os olhos, enquanto sentia o ar, lentamente, invadir e abandonar os pulmões, triturando suas decepções com a leseira do processo. Suportava as despesas com o frete do carro e a merenda. Na boleia, a viúva e a filhinha ao colo; ao lado, o pai do falecido. Na traseira, as cinco testemunhas. Duas viram quando o mau cortou a garganta com um gargalo de garrafa e escafedeu-se mato adentro. A morte só pedira um troco de cachaça. Depois disso, o pai secara os rios dos olhos, perdera as traves do riso, e à noite vagueava nas penumbras do povoado como a encarnação do desgosto, pois sentira no sangue do filho que lhe escorrera pelos dedos a vida clamando um reparo divino que não foi atendido. O silêncio das vozes respeitava os poços vazios da esperança de que houvesse justiça. Era a terceira vez, para a mesma audiência, adiada em março e junho. Do réu foragido, nem cara nem couro.

Passava das nove, depois de um telefonema, a moça disse que sua excelência estava respondendo em outra comarca; não viria. O nome de Deus incorporou-se às indignações e lamúrias, sem se incomodar com os que ajuntavam vitupérios em nome do cão. Não se conteve, à frente de todos, fitando os olhos marejados daquele sofrido pai, disse poucas e boas sobre sua excelência e todas as excelências pretéritas e futuras, que não tinham e não teriam compreensão sobre a dor, sobre a pobreza e sobre o respeito faltante para com todos os que são obrigados a atender aos chamados da justiça, e reclamava, sem refrear o sopro, que devia ter mandado avisar, pois, certamente, já tinha conhecimento que estaria respondendo por outra comarca, e indagava, quase sem consolo, se alguém iria pagar aquelas despesas todas. Rasgou as vestes do medo e se assumiu como cidadão revoltado. “Não custava ter avisado, repetia. É falta de respeito. É falta de respeito.” Os olhares dos curiosos e a prece dos medrosos flertavam com aquela coragem libertária, mas não conseguiam esboçar um aplauso, um arrulho sequer. Foi muito claro. Não teria como atender um quarto chamado. O morto estava morto e a justiça, também.

Era noite e balançava na rede quando o oficial de justiça se apresentou à porta e foi instado a entrar para um café que logo estaria pronto. Tinha tato, era cordial, jeitoso na fala, moldada em treze anos de labor. Esclareceu que sua excelência chegara no final da tarde e dera ouvidos ao fuxico sobre a sessão matinal na porta do fórum. Estava ali com a missão de levá-lo e ponderava que não houvesse resistência, pois sua excelência queria apenas conversar. Pensou; a mulher, de medo, suspirou em pranto; mas, se era isso, que fosse.

Foi; mas não era. Às horas tantas estacaram à porta. De dentro da viatura ouviu a displicente voz da autoridade, que nem levantou da poltrona em frente à novela: “Levem para a delegacia, só falo com ele amanhã!

Dizem que magistrados e promotores deveriam passar pelo menos uma noite numa cela, antes de exercerem seus superpoderes.

2 comentários:

gal disse...

Considero que alguns juízes e promotores estão ali apenas pelo pecuniário. Da leitura do texto, pressupondo-se que seja relato de fato verídico, fica claro que amiúde os juízes se sentem os "maiorais", cidadãos acima de quaisquer críticas ou questionamentos, mandando prender inocente pelo simples fato deste dizer algumas verdades (e como, às vezes, a verdade dói). É, a justiça (para os desfavorecidos, esclareça-se) está morrendo, e aqueles personagens, usando de forma equivocada seus superpoderes, estão contribuindo para sua morte.

JOÃO NETO disse...

DR. JUAREZ, SE ISSO FOR VERDADE MESMO, O SENHOR TEM A OBRIGAÇÃO LEGAL DE DIZER QUAL FOI O(A) JUIZ(A) QUE FEZ UMA DESGRAÇA TÃO GRANDE DESSA.
VAMOS PASSAR O MARANHÃO A LIMPO. COLABORE, DÊ NOMES AOS BOIS OU ÀS VACAS DE TOGA. ME REVOLTO SÓ DE LER UMA ESTÓRIA TRISTE DESSA, POXA.
GETÚLIO CÉSAR